segunda-feira, 13 de setembro de 2010

# Tentativa 3 #

*1*



          As poucas coisas que sabia de sua mãe era porque a madrinha tinha lhe contado em histórias que ela, mesmo pequena, duvidava que fossem completamente reais. Não tinha certeza mas bem parecia que a madrinha inventava algumas partes só para lhe agradar ou para conferir mistério ao que tinha acontecido de fato. Claro que nunca disse isso para ela porque gostava de ouvir do jeitinho que ela dizia, mesmo que fosse mentira. Essas histórias alimentavam a sua imaginação e, mesmo não tendo nenhuma memória de sua mãe, criava em sua cabeça uma imagem dela. Era capaz até de sentir o cheiro, o perfume que ela exalava, conhecia a sua voz e a maciez de sua pele. Sua mente voava longe.
          Tinha outros três irmãos, que madrinha disse em certa noite, estarem cada um num lugar desse mundão. O mais velho tinha ficado com a avó, no sertão, numa casa de taipa de pilão, antes mesmo dos quatro meses de vida. O segundo foi embora com o pai, que o levou para morar com a amante e mais seis filhos, lá pelos lados daquele riozão que ficava no Norte. O terceiro viveu com a mãe até os dois anos e depois foi dado para a adoção, através da indicação da casa de recuperação onde tinha ficado internada após o parto.
          Achava muito bom ter ficado com a madrinha porque adorava aquela mulher. A Dinha, como a chamava carinhosamente, cuidava dela com presteza, dava-lhe sempre boa comida e mimos baratos comprados na feira; contava histórias bonitas, via seus cadernos da escola e elogiava sua letra; antes de dormir ela penteava demoradamente seus cabelos. Não tinha do que reclamar e nunca o fez, por nada.
          A casinha onde as duas moravam era bem simples. Com apenas três cômodos, era suficiente para que fosse aconchegante e, apesar dos poucos móveis e de estar rodeada por muita terra, era limpa ao extremo. A Dinha vivia esfregando o chão da cozinha até que ficasse brilhante como um rubi, escovava o sofá velho e os tapetinhos de pé de cama, passava cloro nas louças amareladas do banheiro para que ficassem desinfectadas de qualquer bactéria.
          Nos fundos, uma pequena horta emoldurava os muros pintados de cal azul. Manjerona, hortelã, alecrim, sálvia, salsa, pimenta de cheiro, cebolinha, tudo quanto era tempero podia ser encontrado ali. Plantavam também alface, acelga, tomate e rabanete; apenas o espinafre não tinha ido para frente porque uma erva daninha tinha tomado conta daquela parte da terra e, quando as duas perceberam, já era tarde demais: ele tinha morrido sufocado.
          Na parte da frente, fizeram uma passarela de cimento queimado que as levava da porta de casa até a estrada barrenta. Dessa maneira, ela não precisava tirar os sapatos quando o ônibus da escola pública onde estudava, há doze quilômetros dali, chegava lá pelas seis horas da manhã e a Dinha, mesmo carregada de sacolas da feira, não afundava os pés na lama nos dias de chuva.
          Por ali não era preciso portão porque afinal, não morava quase ninguém. A cada quilômetro era possível encontrar apenas uma ou duas casas, igualmente pequenas e simplórias, com poucos moradores. Também não era preciso campainha já que não recebiam muitas visitas e duas ou três palmas resolviam a situação, se fosse caso de emergência.
          No parapeito da janela do quarto que dividia com Dinha, por detrás da leve cortininha de algodão, estavam suas pequenas esculturas de argila, que tinha feito no ano anterior. Um menino, um boneco de neve - como o que tinha visto na revista natalina que ganhou na escola - e um beija-flor que mais parecia uma pomba gorda. 
          Ali estavam apenas duas camas baixas com colchões de espuma, uma cômoda antiga que tinham escolhido numa loja de móveis usados e que estavam ainda pagando prestação, dois tapetes feitos de barbante claro e uma arca de madeira que tinha sido da mãe de Dinha, onde guardavam alguns poucos brinquedos e objetos que julgavam ter valor, como o lenço de seda estampado que Madame Sanges tinha lhes dado. A bolsa cheia de livros e cadernos e o saquinho de juta com uma caneta, um lápis, uma borracha e quatro lápis coloridos, deixava na cadeira da cozinha, para que não esquecesse de manhã e até porque o quarto era um pouco apertado.
          Gostava de sua cama e quando nela deitava, sentia que era abraçada. Isso era bom porque os roncos de Dinha eram bem altos e se não fosse por essa cama que tanto amava, não imaginava como conseguiria dormir de novo após acordar sobressaltada com aquela grave sinfonia.