quarta-feira, 10 de julho de 2013

A Questão

Cafezinho de coador
Uma dúzia de moedas
Carinho de mãe
Um dia na praia
Uma mordida num bombocado
A vida do teu filho
Calcinha combinando com sutiã
Um gole de vodka
Histórias de assombração
Ir à festa sem ser convidado
Gol do seu time aos 45
Lençol de algodão egípcio
A pipa no céu
Muito dinheiro no banco
Livro novo e quase esgotado
Um par de sapatos Prada
Fotografia da família reunida
O carro do ano
Casamento feliz
Um emprego bem remunerado
Orgasmos múltiplos
Um banho morno no fim do dia
Pai Nosso na cama
Um filme B no cinema
Seu poodle abanando o rabo
Bandeirinhas de festa junina
Músicas de Beethoven
Um passeio de bicicleta
Álbum de figurinhas completado
O Papa
Uma cantada na rua
Colesterol baixo
Barzinho com os amigos
Um beijo roubado
Massagem nos pés logo cedo
Docinhos de festa
Gostar do próprio corpo
Cachoeira nas costas
Biscoitos amanteigados
Cheiro de roupa nova
Sombra de árvore
Vinho branco na taça correta
Bolsa sem buraco negro
Blusa quente em dia gelado
Uma oração para Oxalá
Orquídea em flor
Garoa fina na madrugada paulista
A palavra certa para a poesia
Um telefonema tão esperado
A Xuxa
A aspereza do sertão
Uma unha desencravada
Um Degas aquarelado
A gostosa da revista
Carta de gente bem distante
Escolher o nome do bebê que vem
Viajar de mochila e chinelo
Um cachorro quente prensado
Elogio do chefe
Amassos no elevador
Brincar com os sobrinhos
Sair transformada do cabeleireiro
As ruas sem trânsito no feriado
Promoção leve 3 pague 2
Encontro romântico
Passarinhos cantando de manhã
Sumir de caso pensado

Então, o que te faz feliz?

Monstro

Envolto em couro de dromedário,
Dois dedos nos pés, como o avestruz.
No peito batia um coração solitário,
Feito de glacê e coberto de alcaçuz.

Por fora, o corpo medonho e nojento...
Dono de um talho na fronte ovalada,
Deixava escorrer um azul sangrento
Que formava a poça onde descansava.

Mas por dentro, o monstro se desfazia
De tanta carência e falta de amor.
Desinformado, ele próprio nem sabia,
De sua beleza escondida no horror.

Todo tempo, imerso em feiúra e maldade,
Havia esquecido o menino que era...
Olhos desconfiados, em qualquer parte
De seu dorso roxo e enrugado de fera,

Fitavam, atônitos, nos outros o medo:
vastos espelhos do seu negado eu.
E comia-lhes até a ponta dos dedos
Para que não lhe tomassem o que era seu.

A noite a lua minguava e o mundo dormia
Enquanto o grotesco, coitado, chorava...
De pesadelos, lembranças e esquizofrenia;
De remorso, pavor, tristeza e dor calada.

Debaixo do céu, ele reinava soberano,
Sentado em seu trono de chifres de boi;
Mas ninguém sabia do seu único plano:
Proteger a memória de quem realmente foi.