Crônicas


Crônica sobre Outra Crise


Eis que num museu localizado no centro da cidade, o monitor da exposição perguntou há quanto tempo havia se formado professora e ela, sorridente, respondeu que terminara a faculdade em 2001.
O jovem, surpreso, olhou em seus olhos e disse que ela parecia bem mais nova e, virando-se para os alunos que ali estavam, apreciando as obras de arte, comentou em tom sarcástico que não imaginava que moças com cara de criança podiam dar aulas para marmanjos como eles.
Na hora, a professora respondeu ainda com delicadeza, apesar de enfurecida, que já estava com quase trinta anos e, sorrindo um sorriso amarelo, agradeceu como se tivesse sido elogiada, porque afinal precisava dar "o exemplo".
A verdade é que se não fosse pelo local onde estava e pelos alunos, que a observavam atentamente, teria esculhambado o tal monitor que, apesar de jovem, era velho e caquético em seus pensamentos preconceituosos.


:o:


Esse tipo de elogio, se é que se pode chamar assim, sempre é uma boa armadilha para me fazer perder o sono. Não gosto desse tipo de comentário.
Será minha pele? Meu cabelo? Meu All Star?
Ou é porque sou assim toda doce mesmo?
Ou pior, não sou atraente como uma mulher deve ser?!
Ou é terrível: sou mesmo uma criança grande?
Não é possível que para ser professor tem que ser velho, feio, sujo, malvado, maltrapilho!!!
Que imagem é essa que a sociedade construiu para a gente?
Ou será que nós realmente fazemos jus ao fardo do descrédito que carregamos?


Crônica dos Por quês

- Isadora, a titia vai viajar e vamos ficar alguns dias sem nos ver. Mas eu volto, tá?
- Por quê?
- Porque eu vou passear.
- Por quê?
- Por que eu gosto.
- E o tio Rogério?
- Também vai.
- E o Zeca?

- Ele não pode ir.
- Por quê?
- Porque ele é cachorro e não pode viajar de avião.
- E porque o Zeca vai ficar sozinho??? (entonação de MUITA preocupação)
- Ele não vai ficar sozinho, vai ficar no hotel de cachorro com muitos amigos. 


(silêncio total...olhou pro outro lado...não gostou nada, nada...como assim não vão levar o Zeca???)

OBS: texto escrito pela minha irmã Valéria, no seu perfil do facebook e transcrito aqui por mim.
OBS 2: eu observava toda essa conversa, de boca aberta, pela sensibilidade de minha menina!


Sábado

Quase silêncio.
Barulhinho da respiração congestionada da filha que dorme.
Som dos dedos em contato com as teclas, teimosos que são, em escrever devaneios.
Ás vezes, o ruído dos carros na rua movimentada, cortam o final de noite fria.
Quase silêncio.
Porque mesmo que o mundo parasse, ainda sobrariam os gritos dos pensamentos.
E os sussurros dos desejos.
E o chorinho amargo da solidão.


Meditação

É bom este armário em que guardo meus pertences.
Silencioso e servil, está sempre de pé para receber o que nele deposito.
Roupas, presentes, objetos de consumo, lembranças, desejos.
Imponente, ainda que de humilde madeira, ele é fiel há mais de 20 anos.
Nunca saiu dali e nem sequer repudiou minhas mãos geladas.
Abro e fecho suas portas quantas vezes eu quiser e, ainda assim, quieto.
Escureceu com o tempo e impregnou-lhe um pó de poluição.
Por vezes o aliso com flanela úmida para que sinta-se, talvez, querido.
Falei-lhe poucas vezes, a maioria esbravejando com suas dobradiças.
Mas não deu-me ouvidos e nem guadou rancor, prestativo, ali ficou.
Apesar de que já roubou-me coisas, pequenas coisas que guardei.
Sim, elas sumiram. Suponho que ele possua um buraco negro, grande.
Como aqueles das bolsas das moças.
Não fiquei por isso nervoso ou incrédulo de sua devoção.
Aos sábados, deixo todas as suas portas abertas, para que sinta o vento.
Presumo que o ar frio que circula em seu interior, nesses dias, o refresca.
Como a brisa que gosto, logo cedo, ao caminhar numa manhã de outono.
Este meu armário, íntimo de meu quarto, conhece até meus segredos.
Viu-me despir e vestir tantas quantas vezes precisei, sem criticar:
Minha velhice, minha barriga, minha flacidez...
Também ouviu minhas conversas com o espelho, ou pelo telefone...
Fitou minhas companhias, foi cúmplice dos choros e gozos...
Ah, como gosto deste meu bom armário!


Volta para Casa

Silenciosamente,
Carregando a filha que docemente dormia,
Devagar até a porta,
Caminhou com a chave na mão
E as obrigações no pensamento.
Mal acendeu as luzes
- a claridade a acordaria.
Mas estando dentro de casa,
Paralisada ficou.
Imóvel,
Tomada por um medo assombroso,
Não conseguia ir ou vir.
Agarrou a menina com seus braços finos
E o coração gigante,
Sem decidir-se, apenas a ouvir.
Barulhos estranhos.
Voltou-se para o carro,
Atônita, sem voz, os olhos encharcados...
Como a protegeria?
Sozinhas ali,
Num lar sem muitas histórias,
Algumas poucas que ainda doíam.
A filha,
Afundada no seu peito,
De olhos cerrados e corpo cansado,
Nada percebia.
Mas a mãe,
Aquela que sempre foi porto seguro,
Agora fragilizada, mais parecia uma criança.
Reuniu coragem,
Fortaleceu o fiapo de fé que lhe restara
E entrou no lugar que abrigava tudo:
Seus sonhos, seus amores, suas conquistas.
Descontroladamente, seu pranto molhava
Os cabelos loiros de sua menina,
Enquanto caminhava lentamente
Olhando cada canto,
Estudando cada porta e cômodo.
Os olhos atentos às trancas e objetos.
Agarrada a sua cria,
Ainda ligou a tantos números conhecidos
- soluçava, nem sabia o que diria.
Ela, sempre tão independente,
Desencanada da vida,
Aparentemente calma e serena,
Estava como nua, impotente.
E ao colocar a filha na cama,
Sentiu-se a mais infeliz e doente criatura.
Era hora de voltar a terapia.


20/06/2012

18:30 tocou o interfone.
os quatro meninos queriam algo para comer. chovia muito.
separei bolachas e doces para aquecer a alma.
levei prá eles ao portão e voltei para dentro.
Isadora observou tudo com atenção.
então começou:

- quem era?
- meninos que queriam comida.
- porque eles não comem na casa deles?
- acho que eles não tem casa.
- mas eles tem que ter casa e comida!
- mas eles são muito pobres filha e não têm.
- o que você deu prá eles?
- bolachas e doces.
- eles vão comer lá fora?
- vão.
- então chama eles aqui dentro, tá escuro!
- filha, não posso chamá-los aqui.
- então porque você não dá a nossa casa prá eles?
- não filha, não podemos dar a casa, onde vamos morar?
- eles estão na chuva?
- estão filha.

olhou profundamente nos meus olhos.

- mamãe, você vai chorar comigo agora?

dei um abraço nela e ela chorou.


O Causo da Janela Aberta

Olhos amarelos fitavam-me atônitos
Silvestres talvez nunca viram pessoa
E as asas rajadas de branco e marrom
Bateram, gigantes, ao meu grito estridente
De susto, de medo, nós duas ali...
Passada a primeira impressão do encontro
Imóveis ficamos, nos observando:
Tão frágeis, noturnas, perdidas e belas,
Coruja e mulher num mesmo banheiro.


O Causo da Porta Aberta

As coisas mudavam sozinhas de lugar
E perguntava-se se estava mesmo louca.
Barulhos estranhos nos cômodos do lar
E perguntava-se se estava mesmo louca.
Sentiu cheiros, viu um vulto passar...
Sim, estava louca, acreditou mesmo chocada.
Pois não devia!
A culpa era da porta aberta.
Estava lá, em sua companhia,
Escondida talvez há muitos dias,
A gata prenha que motivou o seu retorno à terapia.


Domingo

Som do vento nas folhas verdes
- um mantra para o domingo -
Sol que abraça as canelas estendidas
Do corpo esguio recostado à parede.
A calma e a paz das quais se precisa
Para alinhar espírito e pensamento.
Não tem tais minutos há anos, talvez.
Um balão vermelho pipocado de estrelas
Dança, feliz, nas mãos da menina.
Sabiá de peito amarelo canta sozinho
E as nuvens, esparsas, cheias de preguiça,
Vagam no anil sereno em que está absorta.
A felicidade é mesmo fugaz...

A filha grita.
O jogo começa.
Estômagos vazios
Chamam.

E ela não se levantou ainda.


Casados - I


Selinho desbotado.
Mais do mesmo sem graça.
Compartilham o que?
Sem resposta.
As fotos guardadas.
Esqueceram-se no vão.
Vão para onde?
Tropeçam sozinhos.
Movem-se em círculos
Sem intersecção.
Estranhos num lugar comum.


Casados - II

Descamo só
Na cama larga
Amargo o gosto
Do gasto beijo
Memória vasta
E cheia de pó


Casados - III

Escutava a tal música do Lenine enquanto pensava no calor do corpo do marido. Fazia-lhe falta um carinho antes de dormir. Queria aquele cheiro de novo. Desejava tê-lo todo, imediatamente. Desceu descalça, em passos leves e, sem hesitação, ao vê-lo estirado no sofá (vendo o jogo de toda a quarta), pulou em seu peito e sufocou-lhe de lambidas, dengos, deixando-lhe sem pijamas e sem ar.


(...)

Acorda
Pisca


Dona Teresinha

I

As caixas amontoavam-se pela sala,
Em todos os cômodos, no porão.
Itens básicos, do comer de sempre.
Conferíamos e separávamos fichas,
Sacolas de brinquedos coloridos.
Foi na casa da vizinha, Teresinha,
Onde aprendi o que era caridade.

II

Foi minha mãe por um dia,
Enquanto a verdadeira,
Desesperada mas não rendida,
Acompanhava a outra cria,
Durante os pontos na cabeça.
Passei a tarde brincando...
Vi desenhos na televisão,
Tomei uma sopa a noite
E senti-me segura:
Ninguém ía morrer.

III

Fazia um bolo de chocolate batido em liquidificador
Que era tudo de bom na minha vida de menina!
Adorava comê-lo ao lado dela e dos amigos que amava.
Já mais velha e mais sozinha, repeti a receita em casa
(para sentir de novo o gosto gostoso da infância).
Foi bom.
Bom demais.


Efemeridade

Envolto em brilhante prateado,
Sol a pino na esquina que dobrava,
Imerso em pensamentos preocupados,
Jaz agora no destino que o levava,
Sem respostas, tostões ou brocados,
Num repente, assim tão só, se acabava.





Nenhum comentário:

Postar um comentário