quinta-feira, 30 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

Página 3 do Caderno:

"A casa da madame parece o castelo da princesa.
Tomei banho de banheira.
Comi pão de folhas com queijo derretido e tomate e alface e uma azeitona no palito de dente.
Esta cama é bem grande e tem um monte de travesseiros.
A moça que veio me trazer comida é bonita e parece a professora Isaura."

          Lara não pretendia voltar tão logo para casa. Depois do banho, pegou o sabonete e o shampoo e colocou-os na sacola. Não era um roubo, apenas um empréstimo. Tinha esquecido de trazer os seus e prometeu para si que, quando aquela aventura terminasse, voltaria para devolvê-los. Fez o mesmo com uma coberta que estava no pé da cama.
          Já o lanche, não o devorou por completo numa abocanhada só. Pelo contrário. Guardou consigo um pedaço da torta de carne e o bolo de nozes.
          Após fazer as anotações que desejava, deitou naqueles lençõis branquinhos e macios, afundou o corpo exausto, deixou que sua cabeleira negra se espalhasse pela fronha e dormiu com um anjo.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

* 10 *


          Mesmo já estando bem escuro, Lara percebeu que a casa de Madame Sanges era um palácio. Ladeada por jardins, a residência exuberante contrastava com a pobreza de Mara Rosa e atestava como aquela família era de fato muito rica. A garota não imaginava, em sua doce inocência, que tanta riqueza advinha dos impostos pagos pelo povo sofrido da cidade. Acreditava apenas que os Sanges eram pessoas de sorte e que deviam ter trabalhado muito para conquistar tudo aquilo.
          Muito sem jeito, constrangida pelas roupas que usava e pelo mal cheiro de seu suor, a menina seguiu os passos da Madame, que adentravam a casa por uma porta de madeira maciça de lei. Com os olhos baixos, envergonhada de fitar o ambiente, Lara percebeu a beleza do lugar apenas pelo que viu do chão pelo qual passou.
          Primeiro um granito claro da cor da areia, seguido por um corredor forrado de tapetes finíssimos e estampados. Em seguida, um assoalho peroba brilhoso, adiante mais um bocado de tapetes com franjas e depois um outro corredor, ladrilhado de pastilhas cerâmicas pontilhadas de dourado.

- É aqui. Você vai dormir nesse quarto essa noite. Amanhã bem cedo eu peço ao meu motorista Irineu para te levar até em casa. Sua madrinha deve estar muito preocupada! Coitada da Antonia! Pena que vocês não têm telefone, eu poderia acalmá-la. Você não vai me dizer nada?

          Lara continuou de cabeça baixa. olhando para suas unhas encardidas e dedos sujos dos pés.

- No quarto tem roupa de cama limpa. Tome um banho quente, deite e durma. Você verá que tudo estará resolvido logo cedinho. Está com fome?

          Madame Sanges parecia falar sozinha. A menina não demonstrava nenhuma emoção.

- Claro que está, que pergunta boba a minha! Vou pedir a Lucinda que te traga um lanche bem reforçado. Quem tem fome não consegue dormir, não é?

          Silêncio. Apenas o barulhinho dos grilos lá fora.

- Está bem, boa noite então.

          Madame Sanges seguiu o corredor até a segunda porta a direita, entrou e finalmente Lara ficou só. Virou devagarinho a maçaneta da porta do quarto, como se estivesse com medo do que poderia encontrar lá dentro.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

- O que está fazendo aqui? Onde está Antonia? Você veio sem sua madrinha? E que sacola é essa?

          Encheu a menina de mais e mais perguntas, sem dar tempo para que ela respondesse a qualquer uma.

- Vamos, suba no caminhão.

          Lara obedeceu a mulher e esta, dirigindo-se ao motorista:

- Já para casa, chega de comício por hoje. Vamos embora.

          Subiu também na carroceria, desligou o microfone e fez-se ouvir o ronco do motor. O caminhão deixava o centro enquanto os acessores, calados, reorganizavam os panfletos e arrumavam os cabos e caixas de som. As duas ali, sentadas no assoalho sujo, não conversaram durante todo o trajeto até a residência. O silêncio só foi cortado uma vez, já perto do destino:

- Ainda guardo o lenço que a senhora me deu.

          Lara achava Madame Sanges uma mulher estranha. Por que a levava para sua casa?      

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

          Passava pela rua principal o caminhão de campanha do prefeito da cidade. Em cima dele, estavam dois de seus acessores e a primeira-dama Madame Sanges.
          Dona Clara Sanges era conhecida por madame porque possuía uma etiqueta irretocável, além de ser vista pelo povo como pessoa muito rica em dinheiro e em generosidade. Frequentemente era encontrada em bazares beneficentes, reuniões da igreja, visitando as duas escolas de Mara Rosa ou o setor geriátrico do hospital público; fazia caridade para manter uma imagem agradável do governo no âmbito social.
          Com seus cabelos compridos e dourados que emolduravam um rosto jovem, bem cuidado e sempre maquiado, Madame Sanges estava no auge de seu reconhecimeto social aos quarenta e seis anos. E Lara conhecia bem aquele rosto pois ela visitava a casa de Dinha anualmente, levando mantimentos, remédios e presentes. A menina não entendia ao certo porquê. Julgava que Madame Sanges e Dinha se conheciam de outras épocas mas, como poderiam ser amigas, se viviam em universos tão diferentes?
          Lara não teve tempo de conhecer essa história a fundo. Não havia registrado nada em seu caderno sobre esse assunto misterioso. Foi então que o olhar de Madame Sanges cruzou com o de Lara e ela desceu imediatamente do veículo, indo direto ao seu encontro.

domingo, 26 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

* 9 *


          Lara saiu andando, sandálias rasteiras nos pés, sacola pesada no ombro, dez anos de experiência de vida, sol quente queimando seu rosto, nenhum dinheiro no bolso. Iria longe?
          Na estrada viu belezas e mazelas do lugar em que vivia. Riachinhos correndo perto do caminho contrastavam com montes de lixo, aqui e ali, sendo selecionados pelos urubus.
          Caminhou por quase seis horas, parando vez ou outra para tomar água e comer maçã. O que conseguiu foi chegar até o centro, fatigada, suada, pernas e braços tremendo por inteiro. Estava extremamente cansada. Por mais determinação que tivesse, seu corpo era muito jovem para colocar em prática o que sua cabeça madura tinha pensado.
          Tinha fome, sede, vontade de fazer xixi e de dormir profundamente. Nem bem tinha ido embora e já sentia na pele como era bom ter uma casa, um lugar só seu.
          Arrastando as pernas enquanto percebia a noite descendo de mansinho, sentou num dos degraus da escadaria da Igreja Matriz, recostou na bagagem e cochilou.
          Foi acordada subitamente por um barulho de megafone, que gritava chamando a atenção dos últimos comerciantes que baixavam as portas:

- Vote em Paulo Sanges!! Reeleja o prefeito que fez muito por você!! Ele cuida do povo com a dignidade que merece!!

sábado, 25 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

          Na volta da escola, sozinha num dos bancos do ônibus, Lara só conseguia pensar nos olhos vermelhos de Sueli, que por tanto tempo foi sua cúmplice. Doía muito sentir que deixaria sua melhor amiga no meio do nada daquele lugar. Sabia que Sueli a amava demais e que bem por isso ficou revoltada. Mas já tinha decidido que nada a impediria de buscar suas origens e de conhecer sua verdadeira história.
          Ao chegar em casa, tentou esconder o rosto da madrinha, que escolhia arroz na cozinha. Passou rápido por ela para que não visse como estava feia e triste por sua atitude inconsequente. De soslaio, Dinha percebeu que Lara estava deveras vermelha na face e foi logo se adiantando:

- Num dianta achá que nun sei das coisa e qui num vejo sua cara massada, viu? Vorta aqui! Dêxa eu vê direito isso aí.

          Como sempre, Lara obedeceu e mostrou o rosto estapeado. Dinha olhou dentro de seus olhos com muita decepção mas não lhe disse nenhum desaforo .Pegou um bocado de batatas descascadas e fatiadas e colocou sobre o machucado para aliviar a dor.

- Ocê num percebeu qui tudo isso só vai machucá ocê? Num intendeu ainda qui si procurá o qui qué ocê vai perdê coisa dimais?

          Lara foi para o quarto e começou a separar umas roupas. Foi colocando sobre a cama uns poucos pares de meias, calcinhas, pijama e camisola, blusinhas, calças, uma saia, duas bermudas, o uniforme e dois agasalhos de inverno. Abriu a sacola de ráfia da feira para acomodar tudo dentro. Acrescentou o caderno, o lenço estampado de seda, o terço, a boneca de pano e um xale de lã bem puída.
          Dinha olhava para Lara arrumando as malas com uma atitude impassível. Não chorou, não falou, não moveu um braço sequer. Apenas observou com angústia a sua menina de dez anos, que se obrigava a amadurecer tão cedo, preparar sua partida.
          Lara ainda passou pela cozinha, encheu uma garrafinha de plástico com água de beber, pegou um saquinho de biscoitos amanteigados e algumas maçãs. Carregando com dificuldade o peso de suas coisas, parou defronte a madrinha e disse apenas três palavras, que seriam as últimas que Dinha ouviria de sua boca pelo próximo ano:

- Não me segue.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

* 8 *


- Sueli, promete que não conta prá ninguém?
- O quê?

          Sueli, magricela da cor de jambo, cabelos crespos feito palha de aço, era a companheira de Lara para todas as horas. Eram cúmplices em quase tudo e andavam sempre de mãos dadas pelos corredores da escola. Brincavam juntas no balanço de madeira e trocavam semanalmente as bonecas de pano, numa espécie de intercâmbio. Estudavam grudadas desde os seis anos e nunca haviam brigado até aquela tarde.

- Vou sair da cidade prá procurar minha família.
- Quê que você disse?
- Pssssiiiuuuu... fala baixo. Não é para ninguém saber que eu vou embora.
- Mas embora prá onde, Lara?
- Não sei ainda, estou pesquisando.
- Você ficou louca? E a sua madrinha?

          Lara ficou em silêncio. Lembrou da conversa da noite anterior em sua casa, das mãos da madrinha fazendo comida, da risada banguela que ela tinha. Com a vozinha embargada, engasgou mas tentou mostrar firmeza ao responder:

- Ela fica. Eu vou. Ela já cuidou bastante de mim.

          Sueli se afastou. Olhou a amiga de cima embaixo. Começou a ficar enfurecida por dentro, com uma raiva tamanha que tomou conta dela por completo. Pulou em cima de Lara e derrubou-a no chão, deu-lhe um tapa na cara com toda a força que tinha e, ao mesmo tempo, gritou com aquela voz que vem do estômago:

- Sua estúpida! Estúpida! Eu te odeio! Não sou mais sua amiga! Nunca mais!

          Logo apareceu a professora Isaura para apartar o incidente. Mal conseguia segurar Sueli que parecia estar fora de si. Lara chorava copiosamente. A sala de aula ficou aquele pandemônio característico de quando acontece uma situação limite. Algumas crianças atônitas, outras gritando também, umas incitando a violência, várias formando uma rodinha observadora e paralisada. Não havia como continuar o conteúdo. Professora Isaura retirou as duas da sala, cada uma foi para um canto. Sueli ficou no banco esperando que seu coração se acalmasse enquanto o inspetor ligava para sua casa. Lara foi lavar o rosto e ficou sentada numa mureta fria do pátio, com o nariz escorrendo e a marca dos dedos de Sueli estampada na bochecha. E a professora, horrorizada com a violência que julgava gratuita, tentava conter a revolta dos companheiros e amigas de cada uma das meninas envolvidas no caso.
          Mais tarde, professora Isaura, já na sala dos professores, estaria comentando com seus colegas sobre o fato daquela tarde e a polêmica estaria instaurada. A discussão sobre limites, regras, família, violência e outros temas relevantes deixaria todas aquelas cabeças docentes funcionando freneticamente em busca de respostas e soluções. Mas nem de perto entenderiam as motivações de Lara ou de Sueli porque tinham esquecido como era a infância e como era penoso, nessa idade, perder um amigo para o destino ou deixar para trás aquele que sempre esteve ao seu lado.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

- Minha mãe não me quis, né? Não tem nada dessa história dela ter ficado doente...
- Mais qui qui cê tá dizenu agora, minina?
- Você só não me contou para eu não ficar triste, né? Pode dizer!

          Os olhos negros de Lara fitavam profundamente os da madrinha, que não sabia como responder tal pergunta. Tão pequena e tão esperta, a garota sempre estava voltando com o queijo cortado enquanto Dinha ainda tinha ido pegar a faca.
          Dinha foi para a horta, tirou os chinelos de dedo, sentiu a terra se acomodando nos vãos do pé enrugado e calejado, sentou e chamou a menina para junto. Lara se encarapichou no meio de suas pernas, bem quietinha e escutou tudo com atenção.
          Não tinha medo de ouvir as verdades por tantos anos escondidas. Estava curiosa, apreensiva. Por mais que as histórias pudessem deixá-la desconsolada, algo dentro dela queria saber, queria entender.

- Fia, sua mãe era uma muié difícir de lidá, muito cabeça di vento ela. Num parava do lado di marido ninhum purque era meio disbocada e num levava disaforo prá casa, não! E si os homi quiria mandá nela, ela logo se livrava deles. Pur isso é qui seus irmão são um di cada pai.  E ela foi dexanu os fio por aí purque num tinha dinhero prá cuidá deles sozinha, num tinha pacencia prás criança. Intão, quanu ela fico prenha docê, foi a gota! Purque ela já tava apaxonada pelo seu pai, qui trabaiava no posto mais ele batia muito nela. Intão, quanu ocê nasceu, ela ficô cum medo danado dele machucá ocê e achou mió dá ocê prá alguém.

          A menina interrompeu bruscamente, levantou-se ne perguntou:

- Mas porque ela não fugiu comigo e deixou meu pai, meu Deus?!
- Acho qui ela tava dimais di apaxonada e cum medo purque ele era muito ruim, sabe? Não, num sabe não, num é nem prá sabê. A verdade é qui quanu eu fui buscá ocê, ela num mi ixpricô direito nada purque tava muito atormentada a tadinha. Tinha tomado um mundo di remédio prá drumi.
- Remédio?
- Ai, santu, é mió eu pará di falá. Chega dessas cunversa.
- Se você não me contar, eu vou saber de qualquer jeito porque eu vou procurar as histórias onde é que elas estiverem.
- Lara, ocê doidô di veiz?

          E a pequena começou a chorar. Soluçou. Dinha tentou abraçá-la junto ao peito mas Lara esquivou-se, foi para sua caminha e enfiou a cara no travesseiro. Não queria saber de carinhos e dengos.
          Dinha achou que a menina chorava porque tinha achado a verdadeira história de sua mãe uma tristeza sem fim. Mas não. Lara chorava porque já estava sentindo saudade do cheiro da madrinha, que deixaria para trás junto com esta minúscula cidade no meio do mapa. Chorava porque não conseguia imaginar como seria sua vida sem ela.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

- Por que não temos uma bicicleta?
- Ocê incasquetô cum isso, né?
- Seria bom para chegarmos mais rápido no centro, eu poderia ir para a escola com ela...
- I ocê sabe andá nisso? Purque eu num sei! Já tô é muito véia prá essas coisa...
- Será que é caro?
- Mais é craro. Deve custa os óio da cara. Nóis num tem condição disso mia fia, discurpa.
- Você podia fazer umas comidas gostosas prá gente vender prás moças que trabalham no centro, com o dinheiro a gente comprava a bicicleta, depois eu ía fazendo as entregas andando com ela e...
- Di onde ocê tirô tanta indéia? Foi só ocê fazê deiz ano qui sua cabeça começo a pensá esse mundaréu de coisa amalucada.
- É uma boa idéia! Dinha, fala a verdade, não é boa idéia?
- Num sei não.

          Dinha tinha medo das novas idéias de Lara. Percebia a inquietação constante da menina e tinha certeza que logo ela procuraria as respostas para a sua vida, iria atrás do seu destino. E ela ficaria sozinha no mundo, mais uma vez. Sabia que não poderia impedí-la de ir atrás de suas histórias e sonhos mas seu coração queria retardar isso ao máximo.

- Nada di bicicreta. Ocê podi caí, si machucá, si perdê, saí sem rumo por esse mundão...
- Você acha que eu ía fazer uma coisa dessas?

          Lara sabia que a pergunta que fazia era parte de um jogo. Claro que a bicicleta facilitaria seu plano irresponsável e infantil de procurar sua família verdadeira mas não queria assumir isso para a madrinha, mesmo sabendo, ao olhar em seus olhos, que ela já tinha entendido tudo o que sua cabeça de criança imaginava.
           Foi então que finalmente, após tantos anos de silêncio sobre o assunto, um jorro de perguntas vieram a tona.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

* 7 *


          Sábado era dia gostoso. Acordava bem cedinho e regava a horta. Depois, pegava as sacolas de ráfia e ía para a feira com Dinha, comprar alguns legumes e frutas que faltavam em casa; quase sempre trazia também um pacote de biscoitos amanteigados. Em seguida, parava no centro e via o comércio abrindo suas portas, aquele cheiro de gente atarefada era bom. Passavam na igreja para fazer uma oração breve e encher a garrafinha com água benta para a semana seguinte inteira. Então íam para o ponto esperar o próximo ônibus rural, que demoraria, como sempre, uns trinta minutos para chegar.
          Enquanto aguardava o coletivo, via meninas e meninos, de condições financeiras mais abastadas, andarem animadamente com suas bicletas coloridas, alguns empinando pipas grandes, outros andando com desleixo enquanto saboreavam docinhos de chocolate e amêndoas. Gostava de ver essa gente feliz, não sentia inveja ou raiva.
           Lá no fundo, uma vozinha sempre lhe dizia que o futuro estava guardado. Tinha plena certeza que sua história seria grandiosa e interessante.
           Já de tarde, depois do almoço e da louça lavada, passava umas horas escrevendo, desenhando ou brincando na terra; tirava um cochilo e lá pelas dezoito horas, separava o pijama e tomava um banho quentinho. Dinha sempre fazia uma sopa nutritiva e as duas tomavam o jantar sentadas na porta da casa, com as tijelas e colheres nas mãos, vendo as primeiras estrelas surgirem e o sol indo embora. 

- Quero escrever essa receita.
- Da sopa di fejão?
- É.
- I purque? Ocê qué fazê ela quarqué hora?
- Quando eu crescer, quero fazer boa comida igual a você. Se eu não tiver a receita, não vai sair bom. Dita prá mim?
- Pega o cadernu qui eu vô falá intão!

          Lara foi até o quarto, empunhou a caneta e começou a resgistrar.

- Premero ocê iscolhi um fejão bem bom, novinho, um copo cheinho; dexa de moio, iscorre e refoga bem fogadinho cum alho, cebola, óio e uma pimentinha. Daí ocê coloca água i dexa no fogo inté cuzinhá bem. Intão ocê tira do fogo e passa o fejão na penera, amassando bem massado. Pega esse massado e junta com uma batatinha picada e discascada, é craro. Vorta pro fogo prá batata cuzinhá, junto com o caldo qui sobrô. Quanu tivé bem molinha, ocê coloca os macarrão e deixa mais um tempinho inté ele cuzinhá tamém. Pronto!

           Página 2 do caderno:

"Receita da Sopa de Feijão da Madrinha

1 copo de feijão novo
alho
1 cebola
óleo
pimenta
água
1 batata
macarrão

Deixa o feijão de molho, refoga e cozinha. Passa na peneira e devolve no fogo, com a batata e o caldo que sobrou. Cozinha. Coloca o macarrão e cozinha de novo. Pronto!"

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

- Por que a gente mora aqui?
- Como assim minina?
- Ué, por que moramos aqui e não em outro lugar, outra cidade?

           Era mesmo algo para se perguntar. Estavam praticamente no meio do nada, não tinham laços familiares que as prendessem ali. Então por que?
           Antes chamada de Maralina, em 1990 tornou-se distrito de Mara Rosa e, no futuro próximo Amaralina, em Goiás, a mais de 390km da capital, a cidade era pequena e contava com pouco mais de três mil habitantes. Dinha nascera lá, quando ainda era chamada de povoado, numa casinha pequena e humilde na área rural. Na época, a água vinha do poço que ficava na propriedade, não tinham banheiro e o lixo era enterrado ou queimado no terreno baldio mais próximo.
           Tião, filho do vizinho, morador da fazenda contígua ao terreno da família de Dinha, crescera junto com ela e mais tarde, se casaram na cerimônia anual que acontecia na igreja do centro da cidade, quando vinha um padre de fora para realizar os matrimônios de todos os noivos da região. Quando da morte do marido, Dinha saiu da cidade e foi para São Paulo, a procura de trabalho. Não conseguia se sustentar sozinha em Maralina e, para viajar, vendeu os três bois que tinha, a cabra e todas as galinhas.
           Quando decidiu que cuidaria de Lara, achou melhor voltar para a cidade de onde tinha vindo porque a metrópole tinha sido cruel com ela e achou que a menina merecia lugar melhor para viver. Vendeu as poucas coisas que tinha conseguido adquirir em tantos anos e chegou em Mara Rosa, em 1981, sem eira nem beira, apenas com a velha arca de madeira que fora de sua mãe.
           Durante o primeiro ano, ficou hospedada com uma conhecida de sua família e, aos poucos, foi ajeitando a casa onde hoje ela e Lara moravam. Apesar de distante do centro e das escolas, a moradia tinha banheiro, fossa externa e água encanada na cozinha e no chuveiro. Para muitos que ali moravam, isso era um luxo.

- A genti mora aqui purque aqui é nosso lugar!
- Eu não gostei dessa resposta!
- Tá bão! A genti mora aqui purque eu sempre vivi aqui, nasci aqui e a única veiz qui eu num morei aqui, eu mi istrepei. Nessas cidade grandi, num tem ispaço prá genti como a genti, sabe? Achei qui era bom cuidá docê aqui, no meio do verdi e das pranta, cum genti simpres, cum céu istrelado... Essas coisa!
- Hummm.....
- Ocê anda fazeno cada pregunta! É purque cê qué iscreve nu cadernu?
- É.

          A menina foi para a cama, deitou de barriga para cima e permaneceu fitando o teto por bastante tempo enquanto pensava sobre sua cidade. Quase não conhecia a história desse lugar, o pouco que sabia aprendera na escola, nas aulas de Regionalidades, que a professora Isaura preparava cuidadosamente uma vez ao mês.
          E essas outras cidades grandes? Onde será que ficavam? Já tinha visto alguns mapas nos corredores da escola, com bolinhas enormes, bem diferentes do minúsculo pontinho que demarcava sua cidade. Será que seriam lugares bonitos? Onde será que seus familiares estavam? Sua mãe estaria numa dessas bolinhas enormes do mapa? Seria longe para ir andando? Talvez de charrete?
          Pensou alto:

- Preciso de uma bicicleta!
- O qui é qui cê dissi, minina? Bicicreta?
- Ai, não é nada não Dinha, estava falando sozinha.

domingo, 19 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

* 6 *


Página 1 do Caderno:

"Meu nome é Lara e eu tenho 10 anos.
Moro com minha madrinha.
Minha melhor amiga chama Sueli e ela estuda comigo.
Minha professora desse ano chama Isaura.
Não conheço minha mãe, meu pai e meus irmãos, mas eu quero conhecer.
Gosto muito da minha madrinha.
Gosto de quando ela faz bolo.
Meu brinquedo preferido é a boneca de pano.
Não gosto muito de quando chove.
Também não gosto de comer ovo mole, mas não reclamo se tiver que comer isso."

sábado, 18 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

* 5 *


          O dia amanheceu com o sol raiando quente apesar do frio e da secura do ar.
          Dinha levantou-se mais cedo do que de costume, preparou com carinho um café da manhã reforçado e cheio de guloseimas fresquinhas como bolo de macaxeira, geléia de laranja e torradas de pão amanhecido. Colocou uma toalha bonita na mesa, organizou tudo e enquanto esperava Lara acordar, aproveitou para embrulhar o bolo gelado que havia feito para ela levar para a escola. Eram 36 pedacinhos, todos embrulhados cuidadosamente no alumínio, para que ela distribuísse entre os amigos de sala na hora do parabéns. A professora ganharia um pedaço especial, um pouco maior, junto com um broche de florzinha de fuxico que Lara tinha feito.
          Lara acordou sorridente. Olhou pela janela e ficou mais feliz ainda. Que bom que não estava nublado. Preferia os dias de sol. Seu aniversário luzia! Correu para a cozinha, braços abertos para a madrinha.

- É meu aniversário! É meu aniversário!
- I eu num sei? Parabéns mia fia!

           Abraçaram-se forte e demoradamente.
          A menina foi logo sentando a mesa, olhos arregalados para tanta gostosura. Comeu de tudo um pouco, lambendo as pontas dos dedos a cada bocado. Dinha cozinhava como ninguém. Que maravilha de café da manhã. Mal falava enquanto comia porque estava sempre de boca cheia. Quando estava para terminar, foi surpreendida pela madrinha que carregava um pacote bonito e vistoso.
           Abriu depressa, sem pestanejar e sem rasgá-lo irresponsavelmente. Quando viu o presente, seus olhos ficaram marejados e não haviam mais palavras na sua boca melada que pudessem expressar a gratidão que tinha por aquela mulher.
           Cuidadosamente, retirou o presente do pacote.
           Um caderno grande de capa dura, brochura costurada a mão, com folhas feitas de papel reciclado caseiramente, que ainda cheiravam a cola. As folhas, sem pauta, eram numeradas no canto inferior direito, como um livro. A capa era pintada a mão com aquarelas bem aguadas, com motivos estrelares vindos da ponta de uma varinha de condão que uma fada carregava na mão. A pintura da fadinha era tão perfeita que parecia que tinha vida e sairia saltitando dali. Dentro do caderno estava um lindo marcador, em forma de estrela cadente. Na ponta da cauda da estrela tinha um fio de naylon, cheio de contas coloridas.
           Esse caderno a acompanharia por toda a vida. Lembraria sempre de Dinha ao olhar para ele. Lembraria sempre de tudo.
           Enfiou a cabeça no colo de Dinha e ficou ali, por alguns instantes, pensando que a vida era boa demais. Depois, colocou o caderno debaixo do travesseiro, pegou a bolsa com os cadernos, a cesta com os pedacinhos de bolo e foi para a estrada, esperar o ônibus da escola.
           Dinha foi caminhando atrás dela, orgulhosa da mãe que tinha se tornado. Estava fazendo tudo direitinho. Ela, que sempre foi julgada tão mal por tanta gente no passado, era sim uma boa mãe.
           Beijou a testa da menina e acompanhou com o olhar, até onde a vista alcançava, o ônibus que virava lá longe na curva, deixando aquela poeira alta para trás.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

          Era semana do seu aniversário de dez anos e estava muito ansiosa. Corria pela casa, demorava a dormir, falava sozinha enquanto descascava as batatas, estava contente e nervosa. Como será que seria sua vida com dez anos?
          Na segunda-feira, enquanto o sol baixava e ela via pela janela o céu estrelado surgindo, puxou conversa com Dinha sobre o presente que desejava ganhar.

- Sabe Dinha, queria ganhar uma coisa diferente nesse ano.
- Óia mia fia, ocê sabe muito bem qui eu num tenho muito dinhero, intão num pedi nada qui eu num consiga ti dá.
- Eu nunca ía fazer isso, né? Quero uma coisa da feira mesmo, só que diferente.
- I diferenti como? Num intendi!
- Eu queria um caderninho daqueles bem bonitos, com princesa na capa, para eu escrever coisas da vida.
- Coisa da vida? I ocê lá tem coisa já prá contá?
- Tenho sim! Minha vida é bem interessante!

          Dinha sorriu. Sabia que a menina queria escrever suas histórias. Achou que era mesmo um bom presente porque a ajudaria até a melhorar na escola.

- Tá bão. Vou precurá um bem lindinho, ingual ocê.

          E Dinha procurou. Olhou a feira de cima em baixo, vasculhou cada banquinha, mas não encontrou nada que realmente fosse bonito como imaginava que a menina gostaria. Então teve uma idéia prá lá de especial.
          Foi à casa de Dna. Lurdinha, uma artesã de mão cheia, que pintava tecidos, fazia cestarias, mexia com argila e barro no torno, transformava cabaças feias em bonecas de luxo. Contou o que a menina queria e Dna. Lurdinha prometeu que a encomenda ficaria pronta na véspera do grande dia. Não custaria nada porque devia um favor para Dinha, que tinha ficado duas semanas ajudando a cuidar do marido doente daquela mulher.
          Dias depois, procuraria Dinha com o presente nas mãos, embrulhado em um saco de juta tingido, amarrado com laço de fita dourada, orgulhosa de mais uma obra de arte feita por suas mãos. O presente ainda cheirava tinta fresca e era tão delicado, que Dna. Lurdinha pediu a Dinha que guardasse com cuidado, longe os perigos da chuva ou do sol em demasia, até a manhã seguinte, quando fosse entregue.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

* 4 *


          Lara Eurídice do Sacramento. Este era seu nome, aquele que sua mãe havia escolhido para que carregasse por toda a vida, para que fizesse história e deixasse um legado.
          O nome composto, de inspiração mística, fazia referência a duas divindades greco-romanas. Lara fôra uma ninfa considerada pelo seu povo a deusa do silêncio eterno e Eurídice, era a divindade da justiça sábia, personificada numa ninfa pela qual Orfeu se apaixonou perdidamente.
          A menina, ao ler essas informações num livro da biblioteca de sua escola, ficou estupefata. Que impressionante! Já estava abalada por perceber que outros povos acreditavam em muitos deuses e não apenas em um, aquele que conhecia. E, além disso, duas dessas deusas tinham os mesmos nomes que os seus, idênticos!
          Será que por ter esses nomes ela também teria poderes? Será que era por isso que não reclamava de nada e preferia ficar quieta, com suas histórias guardadas em sua cabeça? Será que era por causa desses nomes que ela não achava que o mundo era um lugar justo de verdade?
          É óbvio que disso a mãe nada sabia. Escolheu Lara porque viu uma moça bonita na novela das oito que tinha esse nome e Eurídice era homenagem a uma grande amiga, que havia perdido para a fome, quando era bem pequena.
          A menina foi logo perguntando a Dinha, quando chegou em casa, de onde a mãe tinha escolhido seu nome.

- Ah minina, ocê pricisa mesmo sabê! Sua mãe gostava di nome diferenti, quiria que ocê fosse única até nisso. Iscolheu esse seu nome bunito dimais purque ocê merecia carregá ele, por toda essa vida. Eu sei qui foi uma homenage a duas muié muito bunita, muito das honrada, qui si num fosse gente seria anjo ou deusas, di tão boas qui elas eram! Mais purque essa pregunta agora?
- Nada não, só estava curiosa.

          A menina sorria um sorriso bem grande, estava feliz da vida. Tinha um nome, ou melhor, dois, que eram as coisas mais bonitas que ela podia ter. Sentiu-se mesmo uma deusa e foi caminhando pela estrada de barro como se estivesse caminhando por cima das nuvens.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

* 3 *


          Dinha já estava com seus cinquanta anos quando começou a cuidar dela.
          Era forte e morena, com os cabelos  fartos branquejando nas têmporas. Usava uma colônia de leite de rosas após o banho, o que a deixava cheirosa. Morava sozinha desde os trinta, quando ficou viúva, dois anos depois de seu casamento com Sebastião Desidério.
          Tião, como o chamavam todos dali, era um homem muito bom, generoso e engraçado. Tinha sempre bons causos para contar e ajudava a todos com favores que estavam ao seu alcance. Mas fôra toda essa bondade que tinha lhe causado perder a vida.

- Dinha, você sente falta do Tião?
- Craro minina, ele era bão dimais prá mim.

          Todas as vezes que a garota perguntava dele, Dinha desconversava porque logo subia um nó em sua garganta, que não conseguia desatar. E a conversa terminava.
          A menina era curiosa e já tinha insistido noutras vezes nesse assunto mas percebeu, conforme ficou mais velha, que papear sobre isso deixava Dinha muito triste e deixou de fazer essas perguntas inoportunas.
          Aos poucos, reparando nas escassas fotografias, nos poucos comentários dos vizinhos e em alguns objetos que foram do casal, entendeu que não era para Tião ter morrido, muito menos daquela maneira que os boatos contavam.
          Ouviu que ele tinha morrido de morte matada.
          A moça da banca de revistas conversava com sua mãe velhinha sobre esse assunto quando ela escutou, enquanto estava a escolher as palavras cruzadas que levaria para casa. Não entendeu muita coisa, apenas que um homem que não tinha sido favorecido num tal negócio, ficou muito furioso com Tião e cortou a garganta dele com arame de cerca.
          Voltou para casa, naquele ônibus rural, com essa imagem pregada na sua cabeça.
          De noite, teve pesadelos com Tião, mesmo conhecendo seu rosto apenas pelas fotos. Acordou chorando e toda molhada de xixi, de tanto medo que passou.

- Minina, quê se fez nas calça? Xixi?
- Desculpa, Dinha. Estava com medo.
- Mas di quê? Oh pobrizinha, ocê tá preocupada com essa prova da iscola, num é? Fica anssim não, ocê é bem inteligenti, cheia de idéia boa...

          Ajudou a menina a tirar a roupa e enquanto ela tomava banho, Dinha passou outra camisola para ela dormir. Já era quase uma hora da manhã quando as duas voltaram a pegar no sono, dessa vez sem nenhuma história.
          Na manhã seguinte, ela não conseguia tomar café e nem comer porque aquele boato estava tomando conta de todos os seus pensamentos. Ela não se conteve e enquanto Dinha preparava seu lanche, perguntou:

- Ele morreu de morte matada, né?

          Dinha parou o que estava fazendo, sentou numa cadeira, olhou bem fundo nos olhos da menina e em tom brando, respondeu:

- Lara, Lara... Ocê ouviu as história, né?

          A menina atestou que sim apenas com um maneio de cabeça.

- Si eu num tinha ti contado inté agora é purque achava que ocê inda num tinha qui sabê di nada disso, ouviu? Quanu eu achar qui ocê pricisa sabê dessas tristeza, eu mesminha ti conto. Mais num é agora. Ocê é minina, tem qui proveitá as beleza da vida.

          A menina era esperta. Sabia que jamais Dinha lhe contaria nada disso porque não a queria triste, horrorizada ou, ainda, desacreditada da humanidade. E nunca soube mesmo da história completa de Sebastião, não pela boca desta mulher que tanto lhe amava.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

*2*


          O fato é que no inverno de 1980, mais precisamente as onze horas da noite de 23 de julho, os gritos da mulher que paria ressonavam pela enfermaria do hospital e, em dez minutos, tudo estaria terminado. Descansaria no leito, ao lado de outras seis mulheres que dividiam aquela sala com ela, até que sua filha chegasse para mamar aqueles seus dois peitos já caídos e fartos de leite. E no final do dia seguinte, já estaria em casa, faxinando e cozinhando para o seu homem, frentista de posto de gasolina, que sempre chegava depois que ela já tinha ido se deitar.
          Não tinha um pingo de paciência com crianças e não se conformava de já ter parido quatro vezes. Achava que Deus não estava sendo justo com ela.
          A bebezinha era bem rechonchuda, olhos grandes e negros como o asfalto, cabelo espesso e liso. Tinha muita fome mas não chorava; não reclamava de quase nada. Vestia sempre o que a mãe trazia da casa da patroa, que se desfazia das roupinhas do seu filho quase que semanalmente - a dondoca gostava de fazer compras - e por isso não era comum vê-la usando rosa ou lilás.
          Quando o leite secou, a mãe dava-lhe água no meio da noite se a menina chorava, já que o dinheiro era contado e escasso e, aos poucos, ela foi ficando magricela. Antes mesmo de completar um ano de vida, aquela menina já estaria aos cuidados da velha madrinha, bem distante da maior metrópole do Brasil onde nascera.

- Dinha, me conta de novo do dia que eu nasci?
- Mas minina, já contei isso um monte de vez. Cê não qué sabê de outras coisa não?
- Não, quero de novo. Vai... conta vai...
- Tá bão. Pega a iscova prá eu arrumá esse teu cabelo e daí eu conto.

          Dinha dizia as coisas de um jeito tão bonito que a menina ficava com um sorriso largo, imaginando cada cena e dormia tranquila após a história.

- Sua mãe era boa, viu fia? Era forte, guentou sozinha os tranco. Quando ela sentiu as dor, foi andano até o hospital, bem degavarinho, porque já era sabida nesses assunto de criança e ela sentiu que dava tempo, né?! A noite tava bunita, toda estrelada, mas tava frio e ela levou uma mantinha rosinha, bem quentinha, prá te cobri quando ocê nascesse. E ocê, desde neném já era isperta, nasceu rapidinho, nem deu trabaio. Saiu facinho, chorando feito um bezerrinho e mamou um montão porque cê sempre foi isfomiada! Ô minina! No dia seguinte cês duas já tava em casa. Ela tava muito disposta e logo foi arrumando tudo, dexô tudo limpinho prá ocê não pegar nenhuma doença ruim, sabe? Cuidô direitinho docê, lavava aquele monte de pano de fralda, um atrais do outro; ela gostava docê dimais de muito. Ocê era bem gordinha minina, cheia de drobinha, com essa cabelera bonita e lisinha que ocê tem inté hoje. E ela ía na feira e comprava umas ropinha bem bunitinha, de frorzinha, rosa, azul... Pena que num tem foto. Ocê ía gostá de vê como ocê era quanu era bebê. Mais daí ela fico bem doente né, num dava mais prá ela cuidá direito docê porque tava fraquinha. Eu inté fazia umas sopa prá ela cumê mas num dava jeito, num passava na garganta dela. Intão ela veio pidi prá mim cuidá docê, tava cos óio cheio dágua e eu cuidei, né?!

          Olhou prá garota e esta já tinha adormecido, em seu colo. Deitou a menina com cuidado na cama, cobriu e foi se deitar também.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

# Tentativa 3 #

*1*



          As poucas coisas que sabia de sua mãe era porque a madrinha tinha lhe contado em histórias que ela, mesmo pequena, duvidava que fossem completamente reais. Não tinha certeza mas bem parecia que a madrinha inventava algumas partes só para lhe agradar ou para conferir mistério ao que tinha acontecido de fato. Claro que nunca disse isso para ela porque gostava de ouvir do jeitinho que ela dizia, mesmo que fosse mentira. Essas histórias alimentavam a sua imaginação e, mesmo não tendo nenhuma memória de sua mãe, criava em sua cabeça uma imagem dela. Era capaz até de sentir o cheiro, o perfume que ela exalava, conhecia a sua voz e a maciez de sua pele. Sua mente voava longe.
          Tinha outros três irmãos, que madrinha disse em certa noite, estarem cada um num lugar desse mundão. O mais velho tinha ficado com a avó, no sertão, numa casa de taipa de pilão, antes mesmo dos quatro meses de vida. O segundo foi embora com o pai, que o levou para morar com a amante e mais seis filhos, lá pelos lados daquele riozão que ficava no Norte. O terceiro viveu com a mãe até os dois anos e depois foi dado para a adoção, através da indicação da casa de recuperação onde tinha ficado internada após o parto.
          Achava muito bom ter ficado com a madrinha porque adorava aquela mulher. A Dinha, como a chamava carinhosamente, cuidava dela com presteza, dava-lhe sempre boa comida e mimos baratos comprados na feira; contava histórias bonitas, via seus cadernos da escola e elogiava sua letra; antes de dormir ela penteava demoradamente seus cabelos. Não tinha do que reclamar e nunca o fez, por nada.
          A casinha onde as duas moravam era bem simples. Com apenas três cômodos, era suficiente para que fosse aconchegante e, apesar dos poucos móveis e de estar rodeada por muita terra, era limpa ao extremo. A Dinha vivia esfregando o chão da cozinha até que ficasse brilhante como um rubi, escovava o sofá velho e os tapetinhos de pé de cama, passava cloro nas louças amareladas do banheiro para que ficassem desinfectadas de qualquer bactéria.
          Nos fundos, uma pequena horta emoldurava os muros pintados de cal azul. Manjerona, hortelã, alecrim, sálvia, salsa, pimenta de cheiro, cebolinha, tudo quanto era tempero podia ser encontrado ali. Plantavam também alface, acelga, tomate e rabanete; apenas o espinafre não tinha ido para frente porque uma erva daninha tinha tomado conta daquela parte da terra e, quando as duas perceberam, já era tarde demais: ele tinha morrido sufocado.
          Na parte da frente, fizeram uma passarela de cimento queimado que as levava da porta de casa até a estrada barrenta. Dessa maneira, ela não precisava tirar os sapatos quando o ônibus da escola pública onde estudava, há doze quilômetros dali, chegava lá pelas seis horas da manhã e a Dinha, mesmo carregada de sacolas da feira, não afundava os pés na lama nos dias de chuva.
          Por ali não era preciso portão porque afinal, não morava quase ninguém. A cada quilômetro era possível encontrar apenas uma ou duas casas, igualmente pequenas e simplórias, com poucos moradores. Também não era preciso campainha já que não recebiam muitas visitas e duas ou três palmas resolviam a situação, se fosse caso de emergência.
          No parapeito da janela do quarto que dividia com Dinha, por detrás da leve cortininha de algodão, estavam suas pequenas esculturas de argila, que tinha feito no ano anterior. Um menino, um boneco de neve - como o que tinha visto na revista natalina que ganhou na escola - e um beija-flor que mais parecia uma pomba gorda. 
          Ali estavam apenas duas camas baixas com colchões de espuma, uma cômoda antiga que tinham escolhido numa loja de móveis usados e que estavam ainda pagando prestação, dois tapetes feitos de barbante claro e uma arca de madeira que tinha sido da mãe de Dinha, onde guardavam alguns poucos brinquedos e objetos que julgavam ter valor, como o lenço de seda estampado que Madame Sanges tinha lhes dado. A bolsa cheia de livros e cadernos e o saquinho de juta com uma caneta, um lápis, uma borracha e quatro lápis coloridos, deixava na cadeira da cozinha, para que não esquecesse de manhã e até porque o quarto era um pouco apertado.
          Gostava de sua cama e quando nela deitava, sentia que era abraçada. Isso era bom porque os roncos de Dinha eram bem altos e se não fosse por essa cama que tanto amava, não imaginava como conseguiria dormir de novo após acordar sobressaltada com aquela grave sinfonia.        

domingo, 12 de setembro de 2010

- 8 -

Disposta a mergulhar no gênero do romance.
Durante trê dias consecutivos, escreveu e escreveu e escreveu.
Tinha uma história bonita se apresentando em sua mente, estava no calor da criação. Impressionante como cada detalhe dessa história ia ficando claro para ela. Ainda sem nome.
Empolgadíssima!
Seu companheiro leu os dois primeiros capítulos. Elogiou. Gostou mesmo, mesmo, mesmo.
Ficou realmente interessada em fazer as aulas de escrita com o professor argentino que a irmã havia indicado.
Depois de tudo digitado, conferido, lido e relido, postou os dois primeiros capítulos e deu a cara a tapa, mais uma vez, porque queria experimentar o novo.
Não estava com medo. Escrever essa história estava lhe dando prazer.

sábado, 11 de setembro de 2010

# Tentativa 2 - Continuação #

Crônica sobre outra Crise

Eis que num museu localizado no centro da cidade, o monitor da exposição perguntou há quanto tempo havia se formado professora e ela, sorridente, respondeu que terminara a faculdade em 2001.
O jovem, surpreso, olhou em seus olhos e disse que ela parecia bem mais nova e, virando-se para os alunos que ali estavam, apreciando as obras de arte, comentou em tom sarcástico que não imaginava que moças com cara de criança podiam dar aulas para marmanjos como eles.
Na hora, a professora respondeu ainda com delicadeza, apesar de enfurecida, que já estava com quase trinta anos e, sorrindo um sorriso amarelo, agradeceu como se tivesse sido elogiada, porque afinal precisava dar "o exemplo".
A verdade é que se não fosse pelo local onde estava e pelos alunos, que a observavam atentamente, teria esculhambado o tal monitor que, apesar de jovem, era velho e caquético em seus pensamentos preconceituosos.


:o:


Mais Tarde - Diário da Professora

Esse tipo de elogio, se é que se pode chamar assim, sempre é uma boa armadilha para me fazer perder o sono. Não gosto desse tipo de comentário.
Será minha pele? Meu cabelo? Meu All Star?
Ou é porque sou assim toda doce mesmo?
Ou pior, não sou atraente como uma mulher deve ser?!
Ou é terrível: sou mesmo uma criança grande?
Não é possível que para ser professor tem que ser velho, feio, sujo, malvado, maltrapilho!!!
Que imagem é essa que a sociedade construiu para a gente?
Ou será que nós realmente fazemos jus ao fardo do descrédito que carregamos?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

# Tentativa 2 - Continuação #

Sem Título


CANSADA
CANSAD
CANSA
CANS
CAN
CA
C
.

                                                                                       A
                     P     e                                                   d
D      e                               D
            S                                         A
                                                        ç          A


 



                                                                                                                                                      SÓzinha

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

# Tentativa 2 #

Micro Ensaio sobre a Crise


O que sobrou?
O sonho distante, o desejo mais íntimo, a lembrança do futuro?
O que ficou de mim em mim?
Tantos papéis apagaram de vez a minha essência?

Desenterro minhas memórias e histórias a procura de pistas que possam recompor o espectro do que sou.
Não sou essa imagem, essas palavras; não sou as funções que fui assumindo durante.
Não sou o que dizem e o que olham; será que ainda existo?
Ou sobraram apenas as marcas, manias e fotografias?
Sou só mais um corpo perambulando sem vida própria?

Não pode ser! Deixei-me morrer!
Descuidada.
Cuidando de tudo e de todos, não dei-me conta.

A velha sabedoria popular fez-se exemplar. Em casa de ferreiro o espeto é de pau.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

- 7 -

Ler tudo aquilo, cantar tudo aquilo; estava preenchida de energia para criar.
A saudade do tempo em que escrevia os versos deu-lhe ânimo para criar outros, novinhos em folha.
E agora, bem mais madura e também mais experiente, seria um novo desafio.
Como seria fazer poesia com quase trinta anos?
Não teria mais aquela ansiedade louca perante a vida? Estaria menos ingênua? Desencantada?
Ou será que ainda acreditava no amor ridículo, como disse outro poeta - lembrou do sarau de poemas que tinha presenciado em sua escola, onde seus alunos diziam sutilezas e delicadezas com as mesmas bocas que xingavam os companheiros de turma - e na beleza da vida?
Descobriria na próxima noite, quando novamente tomaria a caneta e a agenda antes de dormir, deslizando pelas linhas e deixando as marcas azuis, signos ritmados sobre suas angústias e desejos, dúvidas e medos...
Ah, que delícia!

terça-feira, 7 de setembro de 2010

IV - Pluma (letra e música de 1998)

Eu corro pelos quatro cantos,
Quero o teu canto via Embratel;
E se te coloco no céu
É porque te levo nas asas.
E sobrevôo casas,
E sobrevôo covas
Multidão apressada, desritmada,
Sempre cansada como eu...

Toque por mim, me toque,
Me coloque louca.
Eu vou tirar tua roupa
Nesse apartamento.
Seja o meu vento, amor de acalento,
Tuas mãos musicais e ritmadas
Me levam para casa.
Seja meu, só meu...

Toque por mim, me toque,
Me coloque louca.
Eu vou tirar tua roupa
Nesse apartamento.
E se me colocas no céu
É porque me leva nas asas.
Sobrevoamos casas,
Sobrevoamos covas,
Tuas mãos musicais e ritmadas
Me levam para casa.
Seja meu, só meu vento...

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

III - Artificial (letra e música de 1997)

Meu lustre é meu sol artificial

Porque não saio mais de casa,

E as poças não são rasas,

E as paredes de concreto são meu mundo

Artificial.

A tua voz pela linha e pela carne.

Tanta voz à toa,

Parecendo estar na boa,

Enquanto a dor é como o amor:

Sem artifícios, sem sacrifícios...



Entro na sala e mergulho

O chão é uma piscina

Água doce, azul de amaralina.

Movo pernas e pés

Lentamente pela água

Que escorreu por trás das lentes,

E eu bebo das lágrimas.

domingo, 5 de setembro de 2010

II - Sumatra (letra e música de 1996)

Meu amor, não peço nada
Além do que é você.
Toda a dor, toda palavra
Não precisa pertencer ao nosso mundo
Que é mais lindo ao natural.

Meu amor, sinceridade vale a pena
Mesmo quando tudo insiste
Para que a gente se perca nos velhos dilemas.

O tempo é nosso.
O tempo é nosso.

sábado, 4 de setembro de 2010

          Resgatando as poesias, achou também as que tinha musicado e, quando conseguiu enfim respirar e ter um tempinho livre depois das 23h, buscou o violão abandonado no canto do quarto - que há tempos não era dedilhado - e ficou ali, sentada na sala, cantando as velhas músicas que tinha composto em sua adolescência.
          Ainda conseguia cantar no mesmo tom apesar do tempo ter alterado sua voz. Os dedos, hoje secos pelo pó de giz, continuavam ágeis: não tinham esquecido a dinâmica da técnica, as cifras eram claras e lhe vinham a mente como brisa gostosa da tarde.
          Como era bom ter esse tempo, sozinha, sem ruídos. Só, com sua voz e suas emoções.

I - Carta para meu Amor

A palavra não dá conta,
Nem o gesto e nem o olhar.
Não há como o indizível ser conhecido.
A natureza, em sua grandeza,
Não revela criação a qual se possa comparar
O que existe, aqui em mim, por você.
E você, meu amor, nem nunca saberá
Porque por mais que te diga, te escreva, te toque...
A razão não compreende!
Talvez em lapsos de ímpeto e impulso,
Como no orgasmo ou num grito de raiva,
Nossas almas de fato se comuniquem...
E aí sim, nessa essência,
Acredito que essa coisa chamada amor
Se revela por completo.

Te respeito no sentido mais "religioso" da palavra, porque te amo a ponto de deixar-te ir se este for seu desejo e porque acredito no potencial que você guarda dentro de si. Mas também tenho por você a paixão efêmera e louca, que deseja tudo o quanto se pode; e a amizade, que torna a companhia entre os velhos tão prazeroza... Que cada segundo nosso, juntos, seja um sempre!

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

- 6 -

          Desde sempre gostou de poesia. Ainda na época de colégio, escrevia tanto que se fez necessária uma pasta, para organizá-los. Como ainda não tinha acesso a tecnologia de ponta por ser cara, usava uma máquina de escrever Olivetti, tão compacta que cabia numa maleta, que fora de sua mãe. Datilografava rápido e fez até um curso de aperfeiçoamento para que produzisse com mais eficácia. 
          Os poemas eram sua vida. Carregava a tal pasta para todos os cantos, lia os versos para os amigos mais íntimos e chegou também a vendê-los.
          As garotas que desejavam conquistar seus amores e não sabiam ao certo o que dizer a eles, logo a procuravam na busca de poesias bem feitas, que pudessem derreter os corações. A preços módicos, seus poemas faziam as pessoas felizes e ela, por sua vez, conseguia comprar um pacote de salgadinho e uma Coca-Cola na cantina da escola, as sextas-feiras.
          A tal pasta cresceu tanto que logo ficou pequena. A alternativa foi encadernar as folhas, em pequenos blocos de 100 páginas. Além disso, catalogou os títulos e os dividiu por temas, para que ficasse mais fácil na hora de selecioná-los.  Os temas eram identificados por cores: vermelho para os de amor, amarelo para os de amizade, preto para os de solidão, azul para os autoreferentes, verde para os nacionalistas, laranja para os de crítica social e etc... Hoje, ria da tal classificação!
          Entre os 13 e 16 anos, escreveu tanto que criou calos nos dedos da mão direita e nem olhava mais para as letras quando datilografava os manuscritos. Depois, começou a tranformar alguns deles em músicas, cifrando-os para violão. Suas músicas faziam sucesso nas rodinhas, madrugada a dentro na praia, ou no intervalo das aulas do Ensino Médio.
          Passou o tempo e com a chegada do computador pessoal, abandonou a velha máquina. Poucos novos poemas já estavam digitados; a maioria ainda permanecia nas agendas, esperando uma brecha em sua louca vida sem tempo, para que pudesse sair dali.
          Além de fazer poesia, gostava de ler poesia. Florbela Espanca, Pablo Neruda, Vinícius de Moraes, Mário Quintana, J.G.de Araújo Jorge, Carlos Drummond... Estavam sempre na cabeceira de sua cama, velando seus sonhos.


:o:


          Achou engraçado retornar àquilo que sempre a acalmou e lhe trazia prazer. Para ela, escrever era tão fundamental como tomar banho, comer ou dormir. Não compreendia como havia ficado tanto tempo distante daquilo que amava. Por que será que tinha se afastado das palavras, do papel, da criação?
          Mais tarde, selecionou poemas que havia escrito em suas agendas esquecidas - algumas poucas ainda estavam guardadas em uma gaveta de seu criado mudo - e os transcreveu para o livroblog, na intenção de tentar o caminho das sutilezas da alma.
          Muitos nem nome tinham, estavam rabiscados ou corrigidos com o próprio lápis; setas ligavam pensamentos a outros no papel.
          E prometeu para ela mesma que, no dia seguinte, resgataria seus compilados e encadernados.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

***** Monólogo de Cecília *****

Performance

Personagem: Cecília é mulher, jovem de 30 anos, veste roupa de noite, com brilhos. Sapatos com meia fina, colar de brilhante e flor vermelha no cabelo. Roupa íntima preta. Está bonita.

Cenário: No canto esquerdo, à frente, um espelho de pedestal. No fundo, à direita, uma escada aberta de alumínio bem alta. Na frente, centro-esquerdo, uma malha clara, estendida (puxada do teto ao chão) forma um triângulo. No centro, bem à frente, um cubo rosa.

:o:

(Foco na escada. Cecília sentada no topo da escada, de pernas cruzadas, olhar fixo na platéia, corpo firme).

- Gosto de poesia, gosto do gosto dela quando habita a minha boca e quando sai de mim, espalhando sabor por aí... gosto de dizer a poesia.

(Suspira. Desce 3 degraus. Pára)

- Dizer coisas bonitas, coisas da poesia, faz bem para a alma. A poesia é a alma do mundo.

(Termina de descer a escada. Luz corredor sai da ponta da escada. Foco da escada apaga. Cecília segue em linha reta pela luz, até a frente do palco).

- Os versos me lembram viagens, dores, tempo largo que demora a passar...

(Senta, desleixada no chão).

- E como eu corro, como a gente corre, sem saber onde vai parar! E o Drumond (ri deliciosamente) com seus deleites (em tom de recitar) “Casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomar, amor, cantar”.

(Tira os sapatos, com cuidado, enquanto fala).

- Odeio bananas, mas me parece que ficam tão bem as casas entre bananeiras; sombra e verde. E mulheres!

(Suspira de novo. Começa a descer a meia calça).

- Nós, mulheres, somos poema até no corpo! (observa atentamente as pernas) Redondilhas de nossas curvas, soneto de nossos desejos, reticências de nossas dores (o olho vai lacrimejando) e... alma! Ah... alma! Luta!

(Se levanta rápido, olhos rasos de lágrimas).

- Mas não quero falar de mim. (pausa longa de respiração). Dói. Vou falar de poesia. (nervosa consigo mesma). Mas se poesia é a alma de tudo, não há como falar dela sem falar da minha alma!

(Silêncio. Enxuga o rosto com as mãos. Pensativa. Vai até o espelho. Começa a tirar o colar e fala dura consigo).

- Olha aqui sua frouxa, se não consegue dizer poesia, não diga!

(Joga o colar no chão e olha para a platéia).

- Não há como falar de poesia, falar da alma, sem sentir. Não há como dizer as palavras sem passá-las pelos poros, por toda a pele, sem curti-las; sem refletir sobre o que realmente querem dizer. Desculpem. (desolada). Achei que poderia me isentar, falar sem me envolver.

(Vai até a malha estendida, dá a volta nela, passando a mão e sentindo o tecido. Enquanto isso, diz)

- Não falarei mais trechos de poesia nem direi mais dela como sendo a gênese da vida. Ficarei quieta. Se ela é alma, passa pelo meu olhar, que é janela do meu espírito.

(Tira a flor do cabelo, vai arrancando as pétalas enquanto anda vagarosamente até chegar ao cubo. Senta, em postura exuberante. Silêncio. Fica olhando para a platéia, atentamente, durante 1 minuto).

- Ah! (grita e levanta exaltada) Mas se ela é alma, está em mim por inteiro, não só no meu olhar! Está nos dedos (olha para as mãos que destruiram a flor, acaricia o caule que sobrou e guarda no seio, dentro do vestido), está na nuca (massageia o pescoço carinhosamente), no meu sexo (leva as mãos entre as pernas e sorri). Ah! (suspira e corre, em direção à malha, agarrando-a). Eu sou poesia! Eu faço poesia! Sou uma poeta que transborda!

(Corre até a escada, sobe 4 degraus, solta o vestido e fica de calcinha e sutiã. Canta forte, enquanto a luz vai baixando)

Manhã triste e cinza
Manhã morta,
Mãe morta
Poesia e ventre
Ventre e entranhas
Alma e entranhas
Manhã