sexta-feira, 29 de março de 2013

Indo

Unhas cresceram.
Chuvas chegaram.
Depois as folhas.
Filhote espichou.
Trabalho acumulou.
Depois a louça.

Somou cada dia.
Passou, passou...
Viu os minutos
Correndo vazios
Pelas frestas.
O que restou?

A sensação de tudo estar por um fio que balança rápido demais.

Banho

Demorada e gorda é a água morna em que se afundam os pés.
Num quente sem fim, vai tomando as migalhas tenras do que restou... até que seu cheiro filtrado perspasse as narinas, gélidas, boiando no fora desse esperado encontro.
Imersa nesse mundo suspenso e sem som, esquece do tempo que corre.
Em meio as texturas camurçadas do óleo de amêndoas, repara nas cicatrizes não bem-vindas.
Fica.
Quando o toque da brisa, que atravessa o vitrô, acaricia o ombro - que de tarde foi consolo, numa só reta diagonal, levanta com insistência a carne que a leva pelos dias vazios.
Deixa para trás tão doce abrigo, para abraçar devagar o corpo em meio ao pano.
Espicha-se toda, os poros atentos e segue rumo a mais viagens do anoitecer.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Oração

Eu te chamo na palma da mão
Para cuidar do meu coração -
Que é teu e não sabe do bem,
Da luz e da guarida que vem
De teu manto sagrado de mãe.

Coroa minha fronte de estrelas
Mais brilhantes, intensas e belas
Suporta minha dor em teu braço
E acolhe minh'alma num laço
Do colo quente e eterno de mãe.

No cheiro da água de alfazema
O meu corpo é doce poema -
Instrumento de fé e caridade,
Para o amor de tua divindade,
Gota d'água, Oxum, minha mãe.

129.600 minutos

I

Desbota,
Dia após dia,
A única imagem
Guardada de ti.
Desejo atordoado
De eternizar
Teu rosto
Morto.

II

O pouco de você,
Que me foi concedido,
Ainda dói.
Com alegria,
Lembraria para sempre
Do que não vivi
Ao teu lado.
Em dias cinzas,
Penso que não serei feliz
Sem esse pedaço.

III

Tem areia morna
Sob os meus pés
Que afundam sós,
Na vã tentativa
De seguir à procura.
O que há em mim
É o mesmo que move
Outros animais.
Por agora, sobrevivo.

terça-feira, 5 de março de 2013

Oxum

I

Faz da minha vida, riacho,
Água corrente do bem...
Deitada em teu colo, relaxo
E durmo a paz de quem tem

Proteção e cor de mãe divina,
Teu escuro, no espelho, refletido.
Vem para aliviar minha sina
E ouvir, com amor, meu pedido:

Esvair a tristeza do inverno
Que secou minh'alma sem rumo,
Aguada de choro sempiterno.

De rosas brancas perfumo
Meu corpo cansado e materno,
Por agora assim fora do prumo.


II

De chama um toquinho crepita
Para iluminar teus domínios.
Teu brilho parece pirita
Mas de ouro são os teus desígnios.

Consolo do vazio do ventre,
Oração de beleza, clamor.
És minha senhora de sempre:
No medo, no riso e na dor.

Oxum, olho da cachoeira,
Leva embora contigo o meu pranto,
No embalo do atabaque e do canto.

Minha guardiã e padroeira,
Aparecida do Mar, canoeira,
Me envolve no azul do teu manto.

domingo, 3 de março de 2013

Ira

I

Dorme no fígado,
Em sono vertical,
A massa calcificada
De palavras quietas,
Inauditas e engasgadas,
De raiva e torpor.
Aprisionadas no lobo,
Às vezes sussurram
Desejos e obscenidades,
Por tempo demais
Contidas nessa cirrose.

II

O fio da faca.
O tapa na cara.
O grito demente.
A unha na carne.
Tudo repousa e bóia
No amarelado fétido
Da bile que carrego.