domingo, 30 de dezembro de 2012

A Velha Mãe

A Velha Mãe,
Mãe de todas nós,
Vestida de lua,
Tecerá uma manta
De brilhantes estrelas
Para cobrí-la do vento,
E entoará cantigas
Esquecidas do mundo
Para acalentar teu sono.

A Velha Mãe,
Mãe de todas nós,
Coroada de sol,
Alimentará teus sonhos
Com histórias bonitas
Sobre seres celestes,
E saciará tua fome
Com leite eterno e morno
De teu seio enrugado
- cúmplice do pranto
de todas nós, filhas,
que perdemos os filhos
e deitamos em teu colo,
pedindo consolo e carinho.

A Velha Mãe,
Mãe de todas nós,
Senhora dos tempos,
Te fará forte,
Mais que a mim,
Para que me vejas de longe,
Caminhando errante;
E suportes, resignada,
Meu egoísmo e apego
De querê-la aqui
Para que eu fosse feliz.

A Velha Mãe,
Mãe de todas nós,
De paciência infinita,
Cuidará de ti,
Da tua pele e espírito,
Com óleo de cheiro e amor,
Assim como eu faria
Se estivesses aqui.

A Velha Mãe,
Mãe de todas nós,
De eterna sabedoria,
Te ensinará sobre tudo,
Te protegerá do medo
E te guardará do mau.
Por ela, saberás,
De mim, que fiquei;
Para quando for hora
E estivermos prontas,
Possas, enfim, me visitar
Para apaziguar meu pranto,
Que é só por mim
E pela saudade.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Um Dia de Cada Vez

I

Amanhece.
Com fortaleza,
Executo a tarefa
Diária e dolorida
De retirar com calma
- a pá empunhada -
Mais um pouco da terra
Que me recobre inteira.

II

Anoitece.
Com esperança,
Acredito que a tarefa
Um dia, quem sabe?,
Por fim termine
E eu sinta, de novo,
Em meu rosto minguado,
O carinho suave da brisa.

III

Na alma, a fé na paz que desejo.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Heloísa (in memorian)

I

Encontrei em mim
A fortaleza de um amor eterno,
Resignado, sem nada em troca,
Que mareja o meu olhar.
Acostumada as marolas
De amar-te calmamente,
Na leveza do toque,
Da prece ou do canto,
Surpreendo-me vencendo,
Às vezes com culpa e ansiedade,
Minha perda de agora.
De sempre.

II

Levo você e teu nome
No relicário do meu coração,
Ainda que o som agudo do vazio
Acompanhe cada um dos meus dias.

III

Tua ausência me ensina
Luta, coragem, devoção.
Bem antes já sabias
Da minha incompletude.
Chegou e se foi,
Minha e do céu.

IV

Amar-te,
Ainda que assim,
Faz-me viver melhor.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

7 Dias Depois

Não durmo.
Ainda ouço os sons:
Das minhas mãos batendo contra a dopamina;
Do sugador aspirando meu dentro;
Da sirene da incubadora nunca usada;
Do choro baixo de quem amava como eu;
Do silêncio em que você veio e no qual ficou;
Da dor de te ver só uma vez.
O som do vazio.

Sobre 19 de Dezembro de 2012

Eu vi
Eu ouvi
Eu senti
Você ir embora.
Restou dor.
Dor.
Dor.
Dor.
A dor impossível.
A dor do para sempre.

Não blasfemei.
Não odiei ninguém.
Não culpei a quem.

Só queria ser feliz
Nos sonhos que tinha,
Nos desejos de tê-la
No colo, no seio,
Ao meu lado dividindo.
Bem perto, vivendo,
Para que eu pudesse vê-la
Um dia, sorrindo,
Em casa, correndo,
A criança que era minha.

(escrito 3 dias depois)

domingo, 16 de dezembro de 2012

Heloísa

I

Encontrei em mim
A beleza de um amor sereno
Que apazigua, adormece,
Distrai o meu olhar.
Acostumada às vertigens
De uma paixão sem medidas
Que não cabe no peito,
No beijo ou no pranto,
Surpreendo-me amando
Sem ansiedade ou culpa,
Ao menos por agora.

II

Levo você e tue nome
Em delicada manta de tricô
E o cheiro suave da calêndula
Perfuma tua pele de dias.

III

A tua presença ensina
Luta, coragem, devoção.
Bem antes já sabias
Da minha incompletude.
Chegou sem ser dona,
Só ou exclusiva.

IV

Amar-te calmamente
Faz-me viver melhor.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Um Pedaço de Mim Morreu

Um pedaço de mim morreu
Na tarde em que vi teus olhos
Marejados, acuados de medo,
Esquivos no canto do quarto,
Qual bicho pequeno em perigo
E o perigo era eu.

Um pedaço de mim morreu
Na tarde em que te roubei o riso
Para dar-te o pranto, o grito,
O jogar-se ao chão de dor,
Qual criança pequena oprimida
E a opressão era eu.

Um pedaço de mim morreu
Na tarde em que eu era mãe,
Mais uma vez e como sempre,
Na cruel tentativa tola de educar,
Qual ser perdido em perguntas
E as respostas não existiam.

A única certeza do agora
É que um pedaço de mim morreu.

domingo, 18 de novembro de 2012

Depois de ver os 40 cliques de Jana Romanova ou Poema para "Waiting"

Grudados.
Cobertos.
Esparsos.
De lado.
Separados.
Nús.
De viés.
Jogados.
Descobertos.
Laçados.
No colo.
Descabelados.
Vestidos.
Abraçados.
De costas.
Trançados.
Silentes.
Tortos.
Quentes.
Contrários.
Juntinhos.
Cansados.
Cúmplices.
Sonhando.
Dividindo.
Carinhando.
Refazendo.
Pausando.
Dormindo.
Esperando.

Hora de Dormir

O toque macio
Do fio de algodão
Do roxo edredom.
Carinho suave
Na sola seca,
Que nem sente,
Amiúde, o grão
Tão pequeno
Da barra vegetal
De esfoliante.
Os pés procuram
O doce conforto
De largarem-se
À deriva,
Em texturas
Bem acolhedoras.
O frio liso
Do percal egípcio
Ou o repuxo quente
Do lençol de malha.
Os dedos finos
Emaranham-se
Nesses contrastes.
Ora afundam-se
No visco elástico,
Ora beiram
As beiras da cama.
Melhor, afagam-se,
Pele com pele,
Até adormecerem.
Descansam felizes.
Sentem-se em casa.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Teres Humanos

Uma valsa fora de compasso
Num rádio tocando sem sintonia.
Os corpos dançam
Desmiolados, escalafobéticos,
Nas intermináveis avenidas
Da metrópole cinza cimentada.

Um meteoro que cai do espaço
Num mundo que contrário rodopia.
Os corpos queimam
Carbonizados, zumbis-atléticos,
Nas valas sempre esquecidas
Das memórias sedimentadas.

Entre este bailar tão crasso
E o fim de tudo, que se anuncia,
Os corpos amam
Desconsolados, assépticos,
Em desventuras bem conhecidas
Da vida fútil e quantificada.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O Vazio

Eu vejo o teu vazio.
Eu sinto o teu vazio.
Eu choro o teu vazio.

Dói estar perto
E não completar,
Não ser o suficiente.
O que te acalma.
O que te responde.

Eu vejo uma menina:
Perplexa,
Assustada,
Só para sempre.
(como eu era)
(como eu sou)
Somos todas.
Todos.

O que posso fazer
E estar,
É ficar assim quieta
Mas presente.
Segurar a tua mão
Antes de dormir,
Ao atravessar a rua.
Quando quiser.

Acordo para te ver,
Te cobrir,
Perceber se respira.
Quero te proteger.
Te guardar
Do medo,
Da crueldade,
Do sem sentido.

Em vão.

Posso te dar
O não saber,
A incompletude,
Os erros,
O tentar ser.

Você está gravada
No meu seio,
No meu púbis,
Nas entranhas,
Desejos,
Orações,
No todo pouco que sou.

Então te acalanto
Enquanto sangramos.

Nós duas aqui
Dançando no chuveiro,
Batendo claras em neve,
Rodopiando os vestidos,
Procurando...

Escarafunchando
As gavetas da alma,
As maldades do mundo,
Nossa solidão.

Duas borboletas perdidas
No ritmo,
Na cidade,
No meio do nada,
Nos sonhos sem fim.

Tuas pelúcias no quarto
Contrastam
Com tuas perguntas
No vácuo,
Com a acidez
De subir o vidro no farol,
Com a aspereza
Das gravatas de seda
Que perambulam pelo centro.

Não posso
Te fechar os olhos,
Anestesiar teus poros
Ou tapar teus ouvidos.

Você já sabe do vazio.

Nós vemos o vazio.
Nós sentimos o vazio.
Nós choramos o vazio.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Minha Bailarina

Banho teus pés na pia:
Juntas rimos do todo molhado
E dos seus dedos encardidos.
Do amor eu achava que nada sabia
Até você vir, rebento esperado,
Com seu brilho de astro destemido.

Descansa as pernas de menina,
Abandona a cabeça em meu peito,
Que é seu todo o carinho.
Exausta de ser bailarina,
Tanto rodopiou que deixou desfeito
O cabelo dourado e fininho.

Agora dorme comigo criança,
Deita os teus sonhos coloridos
Neste meu colo cansado.
Leva meu pensar na tua dança,
Cheia de mágicas, bichos e amigos,
Para eu relembrar meu doce passado.

Poucas Semanas

Largo tempo
Lento ritmo
Denso andar
Tênue olhar
Curto respiro
Corpo redondo
Vadio repouso
Morno abrigar
Calmo cuidado
Feliz preparo

Infinito céu azul da espera:
Esperar, esperar, esperar.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Mesmice

Silentes, dispostos frente a televisão
- os olhos nem reparam no programa -
Tentam ser juntos sem dar as mãos,
Não se tocam e ninguém reclama...

Ausentes, perderam o foco e o chão
Em comum já não há nem a cama
E para cada sim existe sempre um não
Que dói, sangra, murcha e inflama.

Esvaiu-se, aos poucos, aquela ligação
Que os tornavam deliciosa chama,
Dando lugar a tempestuosa solidão.

Viram-se presos a uma torta trama
De medo, mentiras, perda e obrigação.
Distantes, acostumados, sem drama.

domingo, 28 de outubro de 2012

Maternidade

Tranço, paciente, um ninho
De sempre-vivas e dentes de leão,
Que vai ninar com terno carinho,
Embalando como fosse uma mão.

De Héstia, carrego uma filha
Nesse ventre que move a Terra
E com ela minh'alma partilha
Tudo o que no amor se encerra.

Preparo com doce cuidado,
Que sinta-se tão bem amada
E no seio encontre selado

Laço de nos por em caminhada,
Companheiras em lado a lado,
Na solidão dessa vida-estrada.

Velho

Tuas cores tão cálidas
No lençol vermelho
De puro algodão,
Contrastam, pálidas,
Miradas no espelho
Da fugás ilusão

De tê-la somente
E tão só para mim
- eu deserto de gentes -
Num escuro sem fim.

Teus braços repousam
Sobre meus cabelos
Grisalhos da vida.
Tuas asas pousam
Lisinhas, sem pêlos,
Encobrindo as feridas

Abertas, são vertentes
De um gosto ruim.
E só você, tão indulgente,
É senhora capaz de dar fim.

Mas devo-me confessar
Que imerso em pecados
De amor, vivo sem paz.
Ah, desejo te beijar,
Comê-la aos bocados
Sem essa culpa voraz,

De sabê-la amante
Mas querer-te inteira,
Por todo o instante
E de toda a maneira.

Para que eu seja feliz.
Um velho feliz
E não só um velho.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Doce Desejo

Venha doce morte
Sangrar  a solidão,
Que deitou-me no chão
Tecendo seus cortes.

Leva no teu braço
As dores de sempre
Do ser tão ausente
De mim, ser escasso.

Que já não me sinto
Nem sinto ninguém.
Torna-me um refém
Do teu fel de absinto.

Sim, leva-me embora
De olhos bem abertos
Verei teus desertos
Com prazer na demora.

Venha doce morte,
Com olor de dália,
Dar fim ao que talha
Essa vida sem sorte.

sábado, 20 de outubro de 2012

Sem Fim

Deita, amor, teu corpo morno
Que os meus desejos são teus,
Se eu corro, diga que me laça
Com beijos, volúpia e paixão.

Dorme, amor, dorme teu sono
E descansa teus pés nos meus,
Por entre essa noite que passa
De estrelas, sonhos e algodão.

Acorda, amor, desse abandono
Descubra-me nua entre os véus,
Mais uma vez sou tua doce caça,
Sem horas, sem mas e sem não.


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Poesia

Vou te comendo pelas beiradas
Vez enquando, uma mordida,
Mas te desejo, enfim despida,
Para que eu viaje tuas estradas.

E te saboreie como uma amiga,
Como uma puta ou descasada.
De você, não restará nada
- não pouparei nem as feridas.

Te quero toda, inteira para mim,
Os teus segredos, sons e manias,
Exalando perfume de jasmim.

O prazer da carne de uma vadia
Ou a ternura de um querubim.
Tudo, tudo de ti, minha poesia.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Catarina

Um pijama rosa de flores miúdas
Repousava sobre sua pele fininha.
Os cabelos brancos, lisos, ralos,
Emolduravam teu rosto rugoso,
Sorrindo sóis de histórias da roça.
Cera para brilhar o piso vermelho.
Leite de rosas cheiravam as roupas.
Pó para as têmporas no toucador.

Um jardim pequeno de lindas mudas
E tortilhas de ovos com batatinhas.
Mãos disformes, suaves, em calos,
Cozinhavam o simples mas gostoso.
"- Permaganato para quando coça!"
"- Não fique vesga olhando o espelho!"
Especiais memórias, ainda que poucas,
Daquela que foi, sem fim, amor.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Mais querer

Sorriso dos olhos brilhantes
Fitam a foto de um querido morto,
Saudosos, percorrem detalhes e tons
- desejam guardar as cores e contornos -
E surpreendidos, em minutos, afogam-se...
É tarde de cheia por trás das lentes.

Pois reveêm aquele instante:
Em que o tempo parou e ficou absorto
Nas carícias de amor, gemidos e sons,
No ar suspenso do respiro morno,
No louco cio que entregaram-se...
E a eternidade findou de repente.

Restou o gosto do mais querer.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Maldade

Não me encoste,
Nem se instale,
Fique longe de mim.
Que não quero ver o mundo com ferpa nos olhos
E nem descrença nas gentes, ao menos por agora.
Desejo-te morta,
Onde o cheiro não voa
Ou bem perto do nada,
Lá quando finda a estrada,
Naquele vazio remoto
Em que arremessamos as pedras que nos acertaram.
Vai-te embora,
Por hora,
Para que eu durma um sono de trégua,
Sem o peso descabido da vergonha que sinto deles:
Os homens maus.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Sertão

Árida terra em que o pensamento flutua.
Na verdade, suspenso.
A cor
O som
O rio
O céu
- tudo secou sem aviso.
Não restou eco nem registro,
Apenas os cantos dos olhos
- marcados de tênues linhas.
Solidão da sombra de um cajueiro
E de uma pedra muda no meio da caatinga.


quinta-feira, 4 de outubro de 2012

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Notas para quando?

I

Vertigem, desando
No sempre trajeto
- sem graça, tão reto -
Para quem está amando...

II

Pregados no teto
Os meus pés olhando
Contrários experimentando
- das paixões aos dejetos.

III

Sem pudor eu mando
Que cale e engula teu veto.

Deus Lua

No negro infinito
O disco amarelo
Feito um maná
Pendurado chora
Dores de amor
Febres dos sem
E luze tão cheio
Sozinho é alvo
De olhar sedento
De respostas vãs
Reflete espadas
De Jorge e outros
Que golpeiam
Sem dó ou culpa
Teu brilho e halo
E confidenciam
Desejos secretos
A este deus lua
Piedoso e eterno

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Pequenos

Luzem, pequenos, multicoloridos
Na areia, com seus brinquedos de cavar.
Correm descalços, sobem em mastros,
Balançam, sorrindo, no ar...
Descobrem bichinhos e pedras de brilho,
Rolam no chão como estivessem no mar.
Gangorras que sobem até o céu
E cordas tão grandes para escalar.
Água da bica que escorre na boca,
Esquecem do tempo, só querem ficar...
Estão tão felizes sentindo o mundo
E que não acordem, fiquem a sonhar!

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Testamento

Dez quadros de colagens contemporâneas feitas com ingressos de todos os tempos
Outras tantas aquarelas de anelinas multicores
Um terço de contas brancas que foi de mamãe
Dois colares de botões coloridos trançados em linha de bordar
Um piercing e uma aliança de ouro de verdade que não serve mais
Um pen drive de 8 giga com todos os arquivos relevantes e irrelevantes
Domínio de um blog e-book
Centenas de fotos, de músicas  próprias cifradas e poesias datilografadas ainda
Muitas roupas gastas e sem grife nenhuma
Esmaltes velhos, maquiagens novas e sapatos de pontas arredondadas (viajantes)
Duas coroas de sempre-vivas
Um caderno de receitas suculentas todas testadas
Mais de duzentas conchas vindas da praia Preta de São Sebastião
Presilhas de fuxico de retalhos de tecidos baratos
Uma coleção de pedras de todos os lugares que os amigos foram
Um tapete de barbante cru costurado em crochê e toalhinhas de tom rosa
Pouco dinheiro no banco
Três estojos de lápis de cor importados
Uma linda pitangueira que não foi para o jardim e permanece no vaso
Um carro sem revisão
Trinta e duas mandalas pintadas a mão em dias de fúria, de tristeza ou de alegria
Um violão elétrico com novas cordas de naylon de boa marca (seu grande amor)
Centenas de livros interessantes e porcarias, além de revistas desimportantes
Uma rede
Uma fita K7 gravada em casa, em 1997, voz e violão, com músicas próprias
Um vestido de noiva costurado para um único corpo
Três medalhas de ouro de festivais de canção
Um presépio costurado em feltro durante noites de insônia
Uma caixa de costuras customizada e cheinha de agulhas
Diversas plantas incluindo orquídeas perenes
Uma casa com muitas histórias
Vinte e quatro tomos com a obra completa de Machado de Assis, edição de 1967
Incontáveis poemas e textos, de todos os gêneros, de 1994 até a presente data
Uma pulseirinha da maternidade do dia do nascimento da primeira filha

São Paulo, 01 de outubro de 2012.

O depois da fruição das obras de Nino Cais

Sou também meus pertences,
Aqueles que não deixo escapar:
Um cesto, uma orquídea,
Um travesseiro, uma caderneta,
Uns panos de pia bordados.
Era para estar estampada,
No meu documento original,
A foto da árvore do meu jardim.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Relicário

Os dias felizes guardados num relicário
- têm cheiro de mofo e de chuva na telha -
Ficaram ali, confinados e sem brilho,
Esperando por quem os revirasse sem medo.
Tão raros pertences, estão eternizados
Em papéis de bala, de carta ou sem pauta,
Ingressos, bilhetes, pedaços de fita,
Fotografias, cartões postais e marcadores.

Lembranças em seu particular antiquário
- têm cheiro da pele fininha de uma velha -
Toadas de saudade para um estribilho,
Que canta sozinha, desde muito cedo.
Tão claras memórias, permanecem gravadas
Em tudo o que era e que lhe faz falta...
E ainda que digam de sua vida bendita,
Mal sabem seu nome, seus entes e suas cores.

domingo, 23 de setembro de 2012

Dualidade

Olhe bem para mim, repare sem culpa,
No corpo que leva um pouco de morte
E em contradição, já não há desculpa,
Para a vida no ventre, presente da sorte.

Sou não e sou sim, começo e fim.

Envelhece a carne dura e a branca têz,
Enquanto lentamente o fígado perece,
No durante cresce em mim, mês a mês,
O rebento de um sonho que o destino tece.

Estar-me indo enquanto outro vem...
Ver-me perdendo no ganho de alguém.



sábado, 22 de setembro de 2012

Cinza

O breve tilintar do sino dos ventos lembra-me que estou viva.
Absorta em felicidades e risos de um ontem distante,
Descasco freneticamente o esmalte carmim das unhas,
Enquanto choro sozinha, encolhida num vão esquecido do sofá.
É tão solitário viver em desprezo e sem rabo de olhar,
Que sobra-me apenas pisotear fotos e bilhetes amarelados,
Durante minha infinita respiração melancólica e cinza.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Nada em mim.

Noutro tempo cantei como um sabiá laranjeira
Ou rugi em assombrosa indignação.
Restou-me somente calar.
Nenhuma comoção.
Nada em mim.

Noutro tempo escrevi como poetiza aguadeira
Ou anotei em diário uma confissão.
Não me sobrou sequer uma letra.
Nem pontuação.
Nada em mim.

Noutro tempo disse firulas e torrentes de amor
Ou gesticulei italianas onomatopéias.
Meu dentro secou em setembro.
Despetalaram azaléias.
Nada em mim.

Noutro tempo corri tantas léguas sem me indispor
Ou andei divagando, os pés no mar.
Então, por hora, criei raízes.
Permanecer, ficar.
Nada em mim.




quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Desejo

Demorar-se o quanto não pode
O que o desejo não manda
Deixar-se um pouco quieta
O que o mundo não permite

Tempo que corre e retém
A imagem do que na verdade não é
Só deseja ser um pouco só
Esquecida
Temporariamente adormecida

Para se recompor
Refazer-se doce
Presente
Inteira

Em atitude-vontade-sonho-prazer

Sumir ao menos um dia
Sem nome e polícia e telefonemas
Que os filhos cuidassem de si
E o trabalho não se acumulasse

Pudesse então respirar profundamente
E se ouvir
Escutasse enfim seus sons
E tocasse seu corpo com o carinho devido
Que não doa a si faz anos

Quimeras
De carinhar os pés que as carregam
E de comer sem pressa uma manga
Um gomo e um bocado de suspiros
Ou de andar devagar pelo quintal
Sentindo o sol e cuidando das plantas
De banhar-se em água morna corrente
Embebendo a pele de óleo e cheiros
E de sair com calma para ver tudo
A cidade
As coisas
Os bichos
As gentes

Parar quando quisesse
Seguir quando quisesse também
E talvez voltar mais feliz

Notas Impublicáveis sobre o Presente

Os pés, que tão poeticamente a levavam
Não passam de tenras bisnaguinhas.
O sono, dantes de enlevos e doce aura
Agora é como rocha, marido depois da trepada.
E as curvas, outrora em lânguida harmonia,
Descambaram ao desenho cômico de tanajura.
Os poros - transpiravam juventude e gozo -
Ficaram assim, num tom róseo oleoso.
Cabia tudo, desde sonhos até micro roupas.
Pensa que seria mesmo bom se pudesse andar nua
Exibindo seu umbigo saliente por aí,
Ou as pernas corajosas e pesadas como postes
Ou os peitos temporariamente 44 de veias latentes.
Move-se, no seu dentro, outra gente.
E por isso, a fala estúpida sobre sua beleza estética,
É mesmo estúpida.
Trata-se de força.
E isso basta.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Recorte de uma tarde no hospital

Achava que o amor era isso: uns meses, uns beijos, uns recados na caixa postal, uns torpedos, uns bilhetes, uns amassos e umas boas pegadas. E quando esse amor acabou, desconsolada, parou de comer. Durante um final de semana, bebeu apenas água e pôs a todos aflitos. A mãe, aquela que achava que sabia o que era o amor, levou a menina chorosa e de olhos fundos até o hospital, para que o doutor lhe dissesse algo, pois suas palavras e exemplos não convenciam a menina. Gabriela ouviu atentamente o médico, paciente, aguardou a bolsa de soro se esvair em seu corpo por uma hora. Depois, quieta e de cabeça baixa, perguntou à mãe: porque dói tanto? E ficou sem resposta. Esta bem queria dizer-lhe: Ah querida, todos doem, o amor está em toda a parte... Mas estava por demais cansada e assim ficaram ali, sentadas no banco, até o retorno para a reavaliação.


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Efemeridade

Envolto em brilhante prateado,
Sol a pino na esquina que dobrava,
Imerso em pensamentos preocupados,
Jaz agora no destino que o levava,
Sem respostas, tostões ou brocados,
Num repente, assim tão só, se acabava.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Profeta

Fulgura claro astro em tua fronte
Ditame de uma sina de um tão só
Sem prumo, rumo ao horizonte,
Para esvanecer e reduzir-se a pó.

Jamais de existência reticente,
Ainda que dizendo a raros ouvidos,
Sequer calou ou contentou-se ausente
Ciente dos propósitos lhe providos.

Clareia caminhos ermos de outrém,
Arrisca-se à fama de puro e inditoso...
Sabe, de antemão, antes de ser alguém
É anjo terreno de caráter grandioso.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Dona Teresinha

I

As caixas amontoavam-se pela sala,
Em todos os cômodos, no porão.
Itens básicos, do comer de sempre.
Conferíamos e separávamos fichas,
Sacolas de brinquedos coloridos.
Foi na casa da vizinha, Teresinha,
Onde aprendi o que era caridade.

II

Foi minha mãe por um dia,
Enquanto a verdadeira,
Desesperada mas não rendida,
Acompanhava a outra cria,
Durante os pontos na cabeça.
Passei a tarde brincando...
Vi desenhos na televisão,
Tomei uma sopa a noite
E senti-me segura:
Ninguém ía morrer.

III

Fazia um bolo de chocolate batido em liquidificador
Que era tudo de bom na minha vida de menina!
Adorava comê-lo ao lado dela e dos amigos que amava.
Já mais velha e mais sozinha, repeti a receita em casa
(para sentir de novo o gosto gostoso da infância).
Foi bom.
Bom demais.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Guardados

Lençol de algodão cru
De vira bordada em cor,
Dobrado sobre a cama
Onde jazia a madrinha.
Lembrou do tempo antigo
Das costuras que teciam,
Juntas, pernas cruzadas,
Enquanto entoavam
Doces cantos de escravos.

sábado, 25 de agosto de 2012

Noturno

Não há sorte, remédio ou palavra
Que remende o dia que enfim acaba.
Passou, arrastando suas velhas horas
E eu senti nas costas a sua demora.
Salvei-me quantas vezes pude!
Cantei, contei, respirei devagar.
Agora, lua cheia reluz e me ilude
De que logo chega outra aurora
Para que eu possa recomeçar...

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Loba de Mim

Leva, pela estrada, sem rédeas curtas
Corcel negro, noturno, pintado de estrelas
E passeia sem medo em meio as brumas
Ouvindo cigarras, como queria tê-las

Bem perto, cantando, ao pé do ouvido,
Melodias da terra e dos mortos além.
Cavalga sozinha e tem os olhos ardidos
Do vento revolto, soprando num vai e vem.

Indomada, mal(dita), seu ventre de sol
Ofusca, irradia indecifrável segredo.

Deixa que o cheiro do orvalho e do verde
Penetre nos poros, até suas entranhas
E bebe do rio para saciar sua sede...
Escalda os pés onde a água se assanha.

Despida dança, o fogo, o fruto, a lua
E esquece o corpo jogado entre a relva
Que cobre-na como fosse pérola sua.
Loba de mim, centelha de sonho na selva.

Atenta, bem(dita), seu sexo de luz
Ilumina, orienta amores e enlevos.

Corre os olhos nas folhas, plantas, sereno
Sabe que está em tudo ao redor:
Presente, fincada, a Terra dá-lhe um aceno
E afaga os cabelos soltos com velho amor.

Dorme tranquila rodeada de vagalumes,
Imersa em sono seguro, de cura sem fim.
E na aurora, tão forte, sua vida reassume.
Sela e segue, determinada, loba de mim.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Caos

Estavam de tal maneira que cercavam-se entre si. Metralhadoras em punho, cada qual apontando para outro, que se atirassem todos, ao mesmo tempo morreriam. Em frente ao carro da moça, esta cena desfigurada se apresentava como realidade, num dia quente, em que ela acabara de sair do trabalho a caminho de casa. Passava pela viela, para cortar caminho, carregando no veículo os pertences e mais três amigos aos quais dava carona diariamente. Parou atordoada e subitamente, todos os olhos atentos àqueles homens de cara lavada, expressões de ódio. Gritavam para que saíssem imediatamente de carro, com as mãos para o alto. Fizeram o que mandaram.

Eram tempos estranhos. Todos tinham tudo, menos o essencial. Celulares, carros do ano, computadores, televisões, acesso a internet. Escolas lotadas, planos de saúde atingiam marcas incríveis de adesão, dinheiro no banco rendendo em investimentos e carteiras atraentes. Mas não havia mais água e nem comida. O bem mais precioso, que alimentava vitalmente os humanos, estava esgotado. Água potável não era mais regalia de poucos. Não havia moeda que a comprasse porque a Terra estava seca. E com isso, a comida se foi. Plantações inteiras perdidas. Animais morreram de sede. Sobraram apenas as cápsulas.

Pois seguiam-na sempre, a espreita, especulando porque ainda era saudável. Perceberam que todos os dias, a pequena frasqueira vermelha ia e voltava. E seu corpo continuava esbelto. Não era raquítica como os outros. Não tinha olheiras. A pele não descamava e nem as unhas. Os cabelos eram fartos. Sim, ela bebia água e comia. Estava ali, tudo na frasqueira!

- Passa a marmita! Anda, vamos, dá essa marmita, se não nos matamos todos, na sua frente! 

A moça chorava copiosamente. Tinham-na descoberto. E esse era seu fim. Poderia deixar prá lá, que se matassem mesmo, afinal era pouca carne humana perdida, comparada ao seu segredo, que a mantinha viva. Mas será que conseguiria voltar a dormir, todas as noites, com a sombra da morte alheia nos ombros, pesando sobre seu livre arbítrio? E se cedesse a tal ataque, logo se tornaria alvo de outras tantas pessoas, que a perseguiriam, porque fofoca voa rápido, até que enfim não tivesse mais chance e se tornaria mais uma moribunda, a procura. 

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Capitalismo

Quero ser.
Ser sem saldos negativos,
Coisas e bibelôs.
Angustiada,
Trabalho exaustivamente.
Consolido diariamente
A estúpida forma
De ter humano que me tornei.
Choro
Em meio a esse emaranhado
De contas a pagar que eu virei.
Cada vez mais longe,
Quase nem o vejo:
O sonho.
Resta-me
Cobrir minha filha
Enquanto dorme.
Ou aquecer meus pés
Nós pés do meu companheiro.
Estamos mesmo sós,
Presos a essa teia de horrores.

sábado, 11 de agosto de 2012

Estar Professor

Alternativas para os transformadores
Eram só duas, de total crueza:
Suicídio ou civil armamento.

Reformistas e desanimadores
Eram maioria, cheios de aspereza,
Fadados a um triste desalento.

Artistas e ainda professores
Eram poucos, sós por natureza,
Nadando contra um rio turbulento.

De mim, estranha assim,
O que seria? Seria o fim?

Tracei um caminho
De planos coloridos
Ser nunca sozinho
Em desertos áridos.

Tinta, pincel e gente.
Cor, amor e gente.
Gente, gente, gente.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Gabriel Vinícius Alves

Imerso em tanta aspereza
Preso pelos pés
Àquela dor do jamais
Não vê que há grande beleza
No teu coração
E naquilo que faz
Guarde no peito a certeza
De que és o que és
E que pode ser mais
Não permita que a indelicadeza
Amargue tua ação
E te deixe para trás
Mantenha tua luz sempre acesa
Segue tua canção
Sabe que é capaz
De transformar toda a tristeza
Em verso e oração
De liberdade e de paz

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Casados - III

Escutava a tal música do Lenine enquanto pensava no calor do corpo do marido. Fazia-lhe falta um carinho antes de dormir. Queria aquele cheiro de novo. Desejava tê-lo todo, imediatamente. Desceu descalça, em passos leves e, sem hesitação, ao vê-lo estirado no sofá (vendo o jogo de toda a quarta), pulou em seu peito e sufocou-lhe de lambidas, dengos, deixando-lhe sem pijamas e sem ar.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Versinho

Esparramo sonhos num branco lençol,
Que envolve meus pés em noites de outono,
E faço uma trouxa que levo comigo
Para viajar por caminhos de medo e riso.

domingo, 5 de agosto de 2012

O Causo da Porta Aberta

As coisas mudavam sozinhas de lugar
E perguntava-se se estava mesmo louca.
Barulhos estranhos nos cômodos do lar
E perguntava-se se estava mesmo louca.
Sentiu cheiros, viu um vulto passar...
Sim, estava louca, acreditou mesmo chocada.
Pois não devia!
A culpa era da porta aberta.
Estava lá, em sua companhia,
Escondida talvez há muitos dias,
A gata prenha que motivou o seu retorno à terapia.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Constatação

Confinaram a beleza
Em gavetas com bolor
E arruinaram tuas cores.

O halo luzente na noite
Lua cheia de esperanças
Mingua.

Extirparam a delicadeza
Com regras para o sabor
E categorias para os amores.

O fiapo que restou
Dos retalhos tão bonitos
Rasga.

Laminaram a aspereza
Com clichês de horror
Por medo das dores.

Sede que moveu o corpo
Em direção oposta
Seca.



terça-feira, 31 de julho de 2012

Espera


Dorme tranquilo, em tua inércia de amor.
Hei de esperar-te por tempo impreciso.
Certeza e paixão movem o meu querer.

Ainda que amargue estraçalhada na dor
Por não conceder-me nem um só sorriso,
Ao fim da noite vem o amanhecer.

Querido, não há pressa que tinjas de cor
As horas que aguardo em lençol liso
Esperando, calma, teu renascer.

A fênix morre para ressurgir em fulgor
Única assertiva da qual eu preciso
Por carregar o fruto de nosso prazer.

Ah, cobrirá meu corpo de sol, beijo e flor
E tornar-se-á do desejo um aviso...
- Despertai do sono para não perecer!

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Domingo

Som do vento nas folhas verdes
- um mantra para o domingo -
Sol que abraça as canelas estendidas
Do corpo esguio recostado à parede.
A calma e a paz das quais se precisa
Para alinhar espírito e pensamento.
Não tem tais minutos há anos, talvez.
Um balão vermelho pipocado de estrelas
Dança, feliz, nas mãos da menina.
Sabiá de peito amarelo canta sozinho
E as nuvens, esparsas, cheias de preguiça,
Vagam no anil sereno em que está absorta.
A felicidade é mesmo fugaz...

A filha grita.
O jogo começa.
Estômagos vazios
Chamam.

E ela não se levantou ainda.


domingo, 29 de julho de 2012

Saudade

Eternizei você num filme
Que eu retrocedo e pauso,
De novo,
Tantas vezes quanto gotas
Que alagam as ruas
Nessas tardes de verão.
Quero capturar o instante
Doce, do riso
Em que mostrava os dentes
E vivê-lo outras vezes.
O tempo também é cruel.
Amanhece
E meus pés criaram raízes.
Os olhos fundos vêem,
Hipnotizados,
Um fiapo de você
Que teima em ficar.

sábado, 28 de julho de 2012

O Causo da Janela Aberta

Olhos amarelos fitavam-me atônitos
Silvestres talvez nunca viram pessoa
E as asas rajadas de branco e marrom
Bateram, gigantes, ao meu grito estridente
De susto, de medo, nós duas ali...
Passada a primeira impressão do encontro
Imóveis ficamos, nos observando:
Tão frágeis, noturnas, perdidas e belas,
Coruja e mulher num mesmo banheiro.

Noite de Julho

Teu corpo cintila no infinito negro
Leva o sol nos cabelos e ilumina,
Orienta, bússola para barco a deriva.

Despedaço em sua boca meus poros,
Beijo os lábios - órbitas do desejo - e
Esqueço-me afogada em suor e saliva.

Estrelas cadentes luzem em teus olhos
Castanhos, refletem um mar tão revolto
Para onde retorno e mergulho vestida.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Casados - I

Selinho desbotado.
Mais do mesmo sem graça.
Compartilham o que?
Sem resposta.
As fotos guardadas.
Esqueceram-se no vão.
Vão para onde?
Tropeçam sozinhos.
Movem-se em círculos
Sem intersecção.
Estranhos num lugar comum.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Sem Título (Madalena)

Fedida, feiosa, doída,
Fodida essa vida sem par.
Estampada na mídia ardida
Minha cara lavada e sem ar.
Nem viram meus fartos cabelos
Cuidados com um bom xampu,
O foco estava em meus dedos,
Cortados, danados,
Mandando tomar no cú.

- Não sou lixo não!
- Eu não quero foto não!

Lava, lava, lava de novo
E o cheiro não vai embora;
Por debaixo das unhas, nos pelos,
É lixo, chorume, restos e esmola.

Noite, catação de carena, a lanterna iluminou seu destino: colar de ouro e jade que pagou o aluguel atrasado, o novo guarda-roupas, a conta da quitanda, o caixão e o próprio enterro.

"Morre, aos 29 anos, catadora de recicláveis do aterro da zona Sul, que insultou a mídia com gesto obsceno no último julho."
"Virose e desidratação vitimou Madalena da Silva Carmo, a catadora polêmica."

Fedida, feiosa, doída,
Fodida essa vida sem par.
Estampada na mídia ardida,
Minha cara lavada e sem ar.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

20/06/2012

18:30 tocou o interfone.
os quatro meninos queriam algo para comer. chovia muito.
separei bolachas e doces para aquecer a alma.
levei prá eles ao portão e voltei para dentro.
Isadora observou tudo com atenção.
então começou:

- quem era?
- meninos que queriam comida.
- porque eles não comem na casa deles?
- acho que eles não tem casa.
- mas eles tem que ter casa e comida!
- mas eles são muito pobres filha e não têm.
- o que você deu prá eles?
- bolachas e doces.
- eles vão comer lá fora?
- vão.
- então chama eles aqui dentro, tá escuro!
- filha, não posso chamá-los aqui.
- então porque você não dá a nossa casa prá eles?
- não filha, não podemos dar a casa, onde vamos morar?
- eles estão na chuva?
- estão filha.

olhou profundamente nos meus olhos.

- mamãe, você vai chorar comigo agora?

dei um abraço nela e ela chorou.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Essas Meninas

Me comovem essas meninas
Presas em bermudões de elanca,
Rodopiando naquele pátio
Com seus vestidos imaginários de algodão;
Num mundo cheio de purpurina,
Confetes, brilhos, balas de goma
E uns desenhos de coração.
Essas meninas crespas, abandonadas,
Remelentas e mal amadas,
Unhas sujas em mãos de bailarinas...
Que se defendem de um carinho,
Baixam os olhos com elogios,
Emudecidas pelas pancadas.
Há poesia nessas meninas.
Dançam de dia, dançam de noite,
Dançam princesas de contos de fada!
Nenhum afago, colo ou beijo,
Ou orelha encostada na pele do lugar de onde vieram.
Essas meninas rudes,
De nomes impronunciáveis,
Cheias de vida, sonhos e cores...
Nanam bonecas disformes e feias
- suas filhinhas que querem bem.
Ali esperam finais felizes, de estrelinhas,
Com palavras doces, fogos e vagalumes.
Esperam amor de um talvez alguém,
Alguém precioso como essas meninas.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Luana

Pintou de blush dourado
As mãos de unhas carcomidas,
As pálpebras fundas,
As bochechas de meninota magricela
E passou serelepe, feliz da vida,
Sentindo-se mulher maquiada.
Mas estava ali, num prédio velho chamado escola,
Onde suas loucuras não cabem nem se acomodam;
Diante de mim,
Uma pequena professora num mundo de possibilidades!
- Querida, aqui não pode. Vamos, se lave.
Saiu triste, fugida, me partindo o coração,
E voltou, ainda que eu não acreditasse.
Então estava como sempre,
Amarrada ao comportamento imposto, a duras penas.
Mas os olhos eram um mar de água doce.

terça-feira, 8 de maio de 2012

Desencontros

Um prá lá ___________
________ Outro prá cá.
Liga. Toca. Não atende.
Sai. Se vai. Não leva o telefone
Que chama ...........................
Chego. Procuro. Não está.
Onde? Se foi. Não leva a sacola
Que fica lá ............................
Um prá lá ___________
________ Outro prá cá.
Dirijo. Corro. Não vejo.
Anda. Indo. Segue no metrô
Prá longe ..........................
Eu aqui ______
______  Ele lá

domingo, 6 de maio de 2012

Transeuntes Tortos

Os seres são mesmo tortos.
Humanos faltando partes.
Todos capengas, tentando ficar em pé.
Uns não possuem as pernas da coragem.
A outros faltam os braços da ética.
Inúmeros sem língua sincera
Ou sem nariz de curiosidade.
Também sofrem os coitados
Sem os olhos da alma
Ou sem ouvidos filtrantes.
Meu Deus!
E o que será daqueles sem as partes íntimas?
Sim, aquelas mesmas responsáveis pelas iniciativas?
Procuram médicos sem fim,
Sem respostas, sem plexo solar,
Deficientes como todos.
Todos vagando por essa terra afora,
Que é tão torta quanto seus transeuntes.
Sim, já não são mais habitantes e nem moradores.
Será que chegarão a parte alguma?

terça-feira, 24 de abril de 2012

Acolhida

Vejo em mim um pouco de você,
E por considerar-te,
Acolho, quero que faça parte.
Faço um convite sereno e
Te recebo em meu lar,
Braços abertos, quero compartilhar.
Um novo amigo para somar,
Para refazermos o coração,
Cumplicidade de quase irmãos.
É nessa troca que se faz paz,
Reluz enfim comunidade.
Ação do bem e da vontade.



quinta-feira, 19 de abril de 2012

Volta para Casa

Silenciosamente,
Carregando a filha que docemente dormia,
Devagar até a porta,
Caminhou com a chave na mão
E as obrigações no pensamento.
Mal acendeu as luzes
- a claridade a acordaria.
Mas estando dentro de casa,
Paralisada ficou.
Imóvel,
Tomada por um medo assombroso,
Não conseguia ir ou vir.
Agarrou a menina com seus braços finos
E o coração gigante,
Sem decidir-se, apenas a ouvir.
Barulhos estranhos.
Voltou-se para o carro,
Atônita, sem voz, os olhos encharcados...
Como a protegeria?
Sozinhas ali,
Num lar sem muitas histórias,
Algumas poucas que ainda doíam.
A filha,
Afundada no seu peito,
De olhos cerrados e corpo cansado,
Nada percebia.
Mas a mãe,
Aquela que sempre foi porto seguro,
Agora fragilizada, mais parecia uma criança.
Reuniu coragem,
Fortaleceu o fiapo de fé que lhe restara
E entrou no lugar que abrigava tudo:
Seus sonhos, seus amores, suas conquistas.
Descontroladamente, seu pranto molhava
Os cabelos loiros de sua menina,
Enquanto caminhava lentamente
Olhando cada canto,
Estudando cada porta e cômodo.
Os olhos atentos às trancas e objetos.
Agarrada a sua cria,
Ainda ligou a tantos números conhecidos
- soluçava, nem sabia o que diria.
Ela, sempre tão independente,
Desencanada da vida,
Aparentemente calma e serena,
Estava como nua, impotente.
E ao colocar a filha na cama,
Sentiu-se a mais infeliz e doente criatura.
Era hora de voltar a terapia.

quarta-feira, 14 de março de 2012

A Professora

Tomada por um descontentamento sem fim, daqueles tristes mesmo, em que não há palavras e nem gentes que lhe arrancasse ao menos um sorriso amarelo, a professora subia diariamente as escadas da escola como se estivesse acorrentada pelos pés; arrastava-se pelos corredores, olhando a todos e sem ver ninguém. As crianças, que sempre foram seu porto seguro e motivo de suas pequenas felicidades cotidianas, percebiam no seu rosto o quanto estava abatida e cansada; mas sabiamente não lhe perguntavam nada, para não fazê-la aguar-se ou derreter-se em meio aos diários, na sala de aula. Apenas cercavam-na em sua chegada a classe, para demonstrar-lhe afeto. Os mais serelepes, tentavam piadas cutinhas e bobas para deixar-lhe contente. E poucos, os mais quietos, faziam-lhe um carinho nos cabelos ou davam-lhe a mão quentinha, na hora da fila. Era fato que a professora, sempre tão alegre e disposta, passava por maus bocados, mas os pequenos sabiam que não poderiam compreender problemas de adultos e faziam a sua parte, sendo crianças mesmo. A professora viu guardada tanta tristeza dentro de si! Já não era mais salário, carreira ou os problemas de voz que a afligiam. Nem a indisciplina ou as tantas horas que passava em pé. Pensou que talvez fosse o descaso e a omissão. E ainda  tinha aquela sensação terrível de não sentir-se parte de nada. Como se o fio invisível que passa em meio ao corpo estivesse rompido, a professora chegava em casa partida ao meio, com a alma em frangalhos, à procura de um banho de sais e um chá de melissa. Mas então, nessa rotina que nunca acabava, algo surpreendente aconteceu e tudo mudou. E nada mais seria como era antes. Para sempre. Naquela estranha noite chuvosa, enquanto todos dormiam e uns poucos boêmios afogavam-se em copos de pingas baratas, milhares e milhares - na verdade incontáveis - guarda-chuvas coloridos, abertos, caíram lentamente dos céus e ficaram planando sobre as casas, avenidas, por toda a cidade. A professora, que estava deitada com sua máscara de alecrim nos olhos, ouviu um barulho à janela; levantou-se e ao abri-la, lá estava ele, seu salvador: um guarda-chuva grande amarelo, pipocado de bolinhas rosa pink. Não hesitou. Não teve dúvida. Agarrou o cabo do guarda-chuva com toda a esperança que lhe restava no espírito e saiu voando com ele, mesmo consciente de que estava vestida com pijamas e pantufas. E nunca mais voltou.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Conforto Noturno

Há tempos não a revisitava:
bendita caderneta, que insiste em tomar espaço em meu criado.
Feita de pequenos pedaços de papel sem pauta,
capa dura de um preto azulado,
ela é devota a mim como uma carola a Deus.
Enfeitada de dobraduras e origamis coloridos e dourados,
tal capa esconde aquela alvura pura das folhinhas...
E nela escrevo o que quero:
meus desejos, rimas e pensamentos.
Formam-se palavras que são o alimento da minha alma e de outras muitas.
Bendita caderneta que não se rebela
e nem repudia as minhas verdades;
não desconjura as minhas maldades
nem a simplicidade da minha vidinha.
Passo-lhe a caneta, o lápis bem apontado, rabisco seus cantos,
esfrego-lhe obstinadamente a borracha!
E ela não reclama, não maldiz meu comportamento.
Por vezes arranco-lhe um teco, de sua parte interior...
E nada!
Não resmunga de descontentamento!!!
Está ali, disposta, aberta ao meu toque quando eu bem entender.
Esta caderneta, querida e cúmplice, me reconforta,
porque pelo menos a ela eu consigo controlar.