sábado, 9 de outubro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

          Como podia ter sido tão fraca? Perguntava-se Dinha intimamente, várias vezes. Como deixou que a menina saísse assim, sem proibir-lhe, ser que a agarrasse pelas orelhas, tivesse dado umas palmadas... Sentia-se a mulher mais irresponsável do mundo, carregava o fardo da impotência; uma mãe não deixa seu filho ir dessa maneira.
          Entrou na igreja, ajoelhou com dificuldade devido ao peso e rezou durante horas a fio, pedindo proteção para Lara. E depois de tantas rezas, ainda angustiada, fez uma promessa a Nossa Senhora do Rosário. Promessa difícil de se cumprir.
          Pediu a santa que trouxesse sua pequena de volta, do jeito que fosse possível. Queria que ela estivesse perto, para que a acolhesse e nunca mais incorresse no mesmo erro. Não. Não respeitaria mais a vontade de uma garota pequena. Ficaria brava com ela, não aprovaria a sua fuga. Mas a abraçaria com ternura e amor incondicional e depois, a perdoria. Não perdoria a si, apenas a menina, porque esta era criança e não sabia o que fazia.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

          Lara voltou a sua atordoada caminhada, passadas trôpegas porque propôs-se a pisar apenas as pedras grandes. Divertia-se com essa brincadeira, concentrava-se onde seria o próximo passo e qual movimento seria exigido de suas pernocas de taquara. Ria com algumas borboletas que passavam rapidamente sobre sua cabeça e foi esquecendo a dureza que era deixar tudo para trás.
          Entretida, não percebeu, de um lado da estrada, aproximar-se o ciclista vendedor de pães caseiros fresquinhos e, de outro, um caminhoneiro cansado, olhos quase cerrados de sono, que guiava seu veículo transportando carga de insumos agrícolas, como adubo orgânico.
          O ciclista ainda tentou desviar do curso transviado do caminhão, jogando sua bicicleta contra o acostamento rudimentar de pedregulhos, mas ambos não conseguiram evitar os danos que tal acidente causaria.
           Lara só sentiu um tranco nas costas, seguido de um calor que percorreu toda a sua coluna. O corpo da menina, arremessado ao matagal, ainda percebeu o vento, devido a velocidade com a qual era atirado. Não gritou. O choque emudeceu sua boca. Antes de ver tudo desaparecer e nada mais enxergar, o sol e o céu azul se esvaindo devagar, ela ainda teve a sensação morna e molhada do sangue que escorria pela perna direita. Nada lhe passou em mente, nenhum filme dos melhores momentos de sua vida, nenhuma lembrança romântica, como acontecia nos filmes que via nas sessões da tarde.
           Foi assim. No meio de baguetes quantinhas, eixo de roda, corrente de bicicleta e extrume que o destino da garota estava sendo forjado.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

* 12 *


          Quando Madame Sanges deixou sua casa, Dinha vestiu-se rápido e pegou o primeiro ônibus que passou em sua porta para o centro da cidade. Com a certidão de nascimento de Lara nas mãos e a carteira de vacinação, achou que era uma boa alternativa procurá-la no hospital municipal e no posto de saúde. Pensava que preferia encontrar Lara doente do que ter a certeza de que ela tinha ido embora. Apesar de Dinha saber, no fundo do seu coração, que o mais provável em relação ao destino de Lara era aquilo que a faria chorar por meses a fio, seus olhos precisavam comprovar que ela não estava mais na cidade.
          No posto de saúde, olhou por todos os cantos e portas abertas; as fechadas abriu também e nada. Obstinada, seguiu para o hospital e fez o mesmo. Procurou nas filas, na enfermaria, solicitou ajuda as atendentes, interrogou os médicos e pessoas doentes. Ninguém tinha visto a menina. Eram quase doze horas e Dinha estava com o corpo amolecendo de tanta tristeza.
          Precisava ver mais uma vez aquele rosto, mais muitas vezes. Queria beijar Lara com todo o seu amor, pentear de novo os seus cabelos, fazer doces para ela, ralhar com a garota porque tinha brincado na lama. Então fez-se de novo aquele nó apertado em sua garganta, que lhe tomava a voz e o choro. Agonia. Desespero. Pior do que morrer um filho era sabê-lo vivo, mas não sabe-se onde.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

          Resolveu escrever umas notas em seu caderno. Pensou que escrevendo, seu coração se acalmaria, talvez a saudade passasse.

Página 4 do Caderno:

"Não gostava de Mara Rosa, mas agora que estou indo embora, quero voltar. Mas quero ir.
Dinha deve estar preocupada. A professora Isaura também.
Queria dar um beijo nelas.
E a Sueli deve estar triste comigo.
Estou triste."

          Fechou o caderno e guardou rapidamente a caneta, com medo que seu coração fraquejasse ainda mais e fizesse-na voltar atrás. Não podia mais desistir. Sua história estava ali pertinho, no final daquela rodovia comprida de terra... Doce inocência.
          Lara estava tão distante do seu destino como uma alma penada do céu desejado. A pobre criança não fazia idéia dos perigos, males e pessoas do mundo.

domingo, 3 de outubro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

          Enquanto isso, Lara punha-se a correr o quanto podia em direção a estrada não pavimentada, GO 151, que ligava seu município a Mutunópolis; mas não sabia disso, apenas acompanhava as placas que indicavam a saída da cidade, pensando que elas a levariam a uma rodovia que a fizesse chegar a cidade grande. O sol alto queimava seu rosto e o suor escorria pelo pescoço.
          Chegando a estrada, percebeu pouco movimento de pedestres, apenas alguns caminhões de carga agrícola passavam vez ou outra, levantando poeira e embaçando sua visão.
          Foi andando na beirada da estrada, entre a terra e o mato. A sacola foi ficando cada vez mais pesada. Depois de uma hora de caminhada, sentou-se para comer uma maçã e tomar um pouco de água. As sandálias estavam tão sujas que nem parecia uma menina bem cuidada.
          Pensou um pouco em Dinha, em Sueli, na professora Isaura. Havia se passado apenas um dia após sua fuga e já estava com o coração apertado de saudade. Ao mesmo tempo, seu espírito desejava seguir adiante e descobrir a vida, o mundo, sua história.

sábado, 2 de outubro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

* 11 *


          Madame Sanges, atordoada com a fuga da menina, mal conseguiu vestir-se cuidadosamente como de costume. Rapidamente convocou o motorista para que a levasse com urgência até o subúrbio, a fim de comunicar Dinha do ocorrido e, no caminho, foi devorando uns biscoitos de nata para que o estômago, afligido por sua gastrite nervosa, não reclamasse tão cedo.
          Desde que a menina fôra embora, Dinha não conseguia comer ou descolar seus pensamentos dessa triste situação. Sabia que de nada adiantaria tentar encontrar Lara pois acreditava na determinação daquela garota e julgava que ela já estaria longe. Mas, ainda assim, não havia consolo que pudesse acalmar seu espírito. Sentada na porta de casa, Dinha passara a noite em claro, rezando um terço atrás do outro e pedindo à santa de sua devoção, que protegesse o destino da sua pequena.
          Aquele encontro era inesperado. Madame Sanges aparecia uma ou duas vezes ao ano apenas, no Natal e no Dia das Crianças. Quando Dinha avistou o carro clássico estacionando frente a sua porta, levantou-se e bateu a poeira do vestido. Colocou o terço no bolso do avental e aguardou os segundos passarem como se fossem horas. Eis que desenbarcava Madame Sanges, salto afundando na terra lameada, óculos escuros de aro brilhante refletiam a luz do sol.

- Antônia, pelo amor de Deus!

          Os olhos de Dinha, fartos de lágrimas, mostravam que estava angustiada por demais. Desesperada, achou que Madame Sanges vinha lhe trazer uma notícia gravíssima. Afinal, seu coração intuitivo, nunca lhe tinha mentido e, naquele exato momento, ele lhe dizia que Lara tinha morrido.
          Madame Sanges, vendo o estado de Dinha, aproximou-se quase correndo, apertou suas mãos junto as dela e tranquilizou-a.

- Lara passou a noite em casa, estava tudo bem. Mas hoje de manhã ela sumiu. E achei que você saberia para onde ela foi.
- Purque ocê num troxe ela aqui inda ontem?

          Madame Sanges, ofendida, largou as mãos da mulher, olhou bem fundo em seus olhos e, em tom mais grave, disse o que não deveria.

- Se ela saiu daqui, é porque aqui não queria ficar. Você acha que eu a traria de volta? Acha que só você é responsável por ela, hein?

          Com a voz embargada, Dinha respondeu a única coisa que poderia.

- Eu cuidei dessa minina como si fosse minha, cum todo o meu amor, cum tudo qui eu tinha. I agora ocê vem aqui, mi dizê di se responsávei?! Tudinho qui eu dei procê, quanu ocê era piquena, eu dei prá ela. As mesma coisa. Ocê acha qui eu ti criei mal? Foi o mesmo amor, os mesmo carinho! Agora si ocê veio inté aqui só prá pisá ni cima di mim, dizê que eu qui errei, ocê podi imbora agorinha. Si eu tenho pecado, os seu são maior ainda, ouviu?

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

# Tentativa 3 - Continuação #

          O sol brilhava e sua luminosidade atravessava a cortina fininha de voal branco do quarto de hóspedes.
          Lara acordou sobressaltada de um pesadelo que tivera com sua mãe que não conhecia e achou que estava num mato sem cachorro pois seu plano de fuga estaria arruinado a luz do dia. A tadinha queria ter fugido ainda de madrugada mas o cansaço impediu que ela acordasse antes.
          Percebeu que a casa estava silenciosa, todos deviam estar dormindo. Arrumou rapidamente a sacola, trocou de roupa e escreveu um bilhetinho de poucas palavras, o qual deixou em cima da cama.
          Abriu cautelosamente a grande janela, jogou a bagagem de lá de cima e pulou em seguida, do segundo andar. Caiu de quatro como um gato mas não se machucou, apenas uns arranhões nos joelhos. Avistou um grande portão, pegou suas coisas e saiu correndo em direção a ele, se escondendo vez ou outra atrás da cerca viva de pingos. Com força, conseguiu empurrar uma das folhas e o portão foi se abrindo lentamente.
          Estava no mundo de novo.