segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Relicário

Os dias felizes guardados num relicário
- têm cheiro de mofo e de chuva na telha -
Ficaram ali, confinados e sem brilho,
Esperando por quem os revirasse sem medo.
Tão raros pertences, estão eternizados
Em papéis de bala, de carta ou sem pauta,
Ingressos, bilhetes, pedaços de fita,
Fotografias, cartões postais e marcadores.

Lembranças em seu particular antiquário
- têm cheiro da pele fininha de uma velha -
Toadas de saudade para um estribilho,
Que canta sozinha, desde muito cedo.
Tão claras memórias, permanecem gravadas
Em tudo o que era e que lhe faz falta...
E ainda que digam de sua vida bendita,
Mal sabem seu nome, seus entes e suas cores.

domingo, 23 de setembro de 2012

Dualidade

Olhe bem para mim, repare sem culpa,
No corpo que leva um pouco de morte
E em contradição, já não há desculpa,
Para a vida no ventre, presente da sorte.

Sou não e sou sim, começo e fim.

Envelhece a carne dura e a branca têz,
Enquanto lentamente o fígado perece,
No durante cresce em mim, mês a mês,
O rebento de um sonho que o destino tece.

Estar-me indo enquanto outro vem...
Ver-me perdendo no ganho de alguém.



sábado, 22 de setembro de 2012

Cinza

O breve tilintar do sino dos ventos lembra-me que estou viva.
Absorta em felicidades e risos de um ontem distante,
Descasco freneticamente o esmalte carmim das unhas,
Enquanto choro sozinha, encolhida num vão esquecido do sofá.
É tão solitário viver em desprezo e sem rabo de olhar,
Que sobra-me apenas pisotear fotos e bilhetes amarelados,
Durante minha infinita respiração melancólica e cinza.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Nada em mim.

Noutro tempo cantei como um sabiá laranjeira
Ou rugi em assombrosa indignação.
Restou-me somente calar.
Nenhuma comoção.
Nada em mim.

Noutro tempo escrevi como poetiza aguadeira
Ou anotei em diário uma confissão.
Não me sobrou sequer uma letra.
Nem pontuação.
Nada em mim.

Noutro tempo disse firulas e torrentes de amor
Ou gesticulei italianas onomatopéias.
Meu dentro secou em setembro.
Despetalaram azaléias.
Nada em mim.

Noutro tempo corri tantas léguas sem me indispor
Ou andei divagando, os pés no mar.
Então, por hora, criei raízes.
Permanecer, ficar.
Nada em mim.




quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Desejo

Demorar-se o quanto não pode
O que o desejo não manda
Deixar-se um pouco quieta
O que o mundo não permite

Tempo que corre e retém
A imagem do que na verdade não é
Só deseja ser um pouco só
Esquecida
Temporariamente adormecida

Para se recompor
Refazer-se doce
Presente
Inteira

Em atitude-vontade-sonho-prazer

Sumir ao menos um dia
Sem nome e polícia e telefonemas
Que os filhos cuidassem de si
E o trabalho não se acumulasse

Pudesse então respirar profundamente
E se ouvir
Escutasse enfim seus sons
E tocasse seu corpo com o carinho devido
Que não doa a si faz anos

Quimeras
De carinhar os pés que as carregam
E de comer sem pressa uma manga
Um gomo e um bocado de suspiros
Ou de andar devagar pelo quintal
Sentindo o sol e cuidando das plantas
De banhar-se em água morna corrente
Embebendo a pele de óleo e cheiros
E de sair com calma para ver tudo
A cidade
As coisas
Os bichos
As gentes

Parar quando quisesse
Seguir quando quisesse também
E talvez voltar mais feliz

Notas Impublicáveis sobre o Presente

Os pés, que tão poeticamente a levavam
Não passam de tenras bisnaguinhas.
O sono, dantes de enlevos e doce aura
Agora é como rocha, marido depois da trepada.
E as curvas, outrora em lânguida harmonia,
Descambaram ao desenho cômico de tanajura.
Os poros - transpiravam juventude e gozo -
Ficaram assim, num tom róseo oleoso.
Cabia tudo, desde sonhos até micro roupas.
Pensa que seria mesmo bom se pudesse andar nua
Exibindo seu umbigo saliente por aí,
Ou as pernas corajosas e pesadas como postes
Ou os peitos temporariamente 44 de veias latentes.
Move-se, no seu dentro, outra gente.
E por isso, a fala estúpida sobre sua beleza estética,
É mesmo estúpida.
Trata-se de força.
E isso basta.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Recorte de uma tarde no hospital

Achava que o amor era isso: uns meses, uns beijos, uns recados na caixa postal, uns torpedos, uns bilhetes, uns amassos e umas boas pegadas. E quando esse amor acabou, desconsolada, parou de comer. Durante um final de semana, bebeu apenas água e pôs a todos aflitos. A mãe, aquela que achava que sabia o que era o amor, levou a menina chorosa e de olhos fundos até o hospital, para que o doutor lhe dissesse algo, pois suas palavras e exemplos não convenciam a menina. Gabriela ouviu atentamente o médico, paciente, aguardou a bolsa de soro se esvair em seu corpo por uma hora. Depois, quieta e de cabeça baixa, perguntou à mãe: porque dói tanto? E ficou sem resposta. Esta bem queria dizer-lhe: Ah querida, todos doem, o amor está em toda a parte... Mas estava por demais cansada e assim ficaram ali, sentadas no banco, até o retorno para a reavaliação.


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Efemeridade

Envolto em brilhante prateado,
Sol a pino na esquina que dobrava,
Imerso em pensamentos preocupados,
Jaz agora no destino que o levava,
Sem respostas, tostões ou brocados,
Num repente, assim tão só, se acabava.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Profeta

Fulgura claro astro em tua fronte
Ditame de uma sina de um tão só
Sem prumo, rumo ao horizonte,
Para esvanecer e reduzir-se a pó.

Jamais de existência reticente,
Ainda que dizendo a raros ouvidos,
Sequer calou ou contentou-se ausente
Ciente dos propósitos lhe providos.

Clareia caminhos ermos de outrém,
Arrisca-se à fama de puro e inditoso...
Sabe, de antemão, antes de ser alguém
É anjo terreno de caráter grandioso.