quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Dona Teresinha

I

As caixas amontoavam-se pela sala,
Em todos os cômodos, no porão.
Itens básicos, do comer de sempre.
Conferíamos e separávamos fichas,
Sacolas de brinquedos coloridos.
Foi na casa da vizinha, Teresinha,
Onde aprendi o que era caridade.

II

Foi minha mãe por um dia,
Enquanto a verdadeira,
Desesperada mas não rendida,
Acompanhava a outra cria,
Durante os pontos na cabeça.
Passei a tarde brincando...
Vi desenhos na televisão,
Tomei uma sopa a noite
E senti-me segura:
Ninguém ía morrer.

III

Fazia um bolo de chocolate batido em liquidificador
Que era tudo de bom na minha vida de menina!
Adorava comê-lo ao lado dela e dos amigos que amava.
Já mais velha e mais sozinha, repeti a receita em casa
(para sentir de novo o gosto gostoso da infância).
Foi bom.
Bom demais.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Guardados

Lençol de algodão cru
De vira bordada em cor,
Dobrado sobre a cama
Onde jazia a madrinha.
Lembrou do tempo antigo
Das costuras que teciam,
Juntas, pernas cruzadas,
Enquanto entoavam
Doces cantos de escravos.

sábado, 25 de agosto de 2012

Noturno

Não há sorte, remédio ou palavra
Que remende o dia que enfim acaba.
Passou, arrastando suas velhas horas
E eu senti nas costas a sua demora.
Salvei-me quantas vezes pude!
Cantei, contei, respirei devagar.
Agora, lua cheia reluz e me ilude
De que logo chega outra aurora
Para que eu possa recomeçar...

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Loba de Mim

Leva, pela estrada, sem rédeas curtas
Corcel negro, noturno, pintado de estrelas
E passeia sem medo em meio as brumas
Ouvindo cigarras, como queria tê-las

Bem perto, cantando, ao pé do ouvido,
Melodias da terra e dos mortos além.
Cavalga sozinha e tem os olhos ardidos
Do vento revolto, soprando num vai e vem.

Indomada, mal(dita), seu ventre de sol
Ofusca, irradia indecifrável segredo.

Deixa que o cheiro do orvalho e do verde
Penetre nos poros, até suas entranhas
E bebe do rio para saciar sua sede...
Escalda os pés onde a água se assanha.

Despida dança, o fogo, o fruto, a lua
E esquece o corpo jogado entre a relva
Que cobre-na como fosse pérola sua.
Loba de mim, centelha de sonho na selva.

Atenta, bem(dita), seu sexo de luz
Ilumina, orienta amores e enlevos.

Corre os olhos nas folhas, plantas, sereno
Sabe que está em tudo ao redor:
Presente, fincada, a Terra dá-lhe um aceno
E afaga os cabelos soltos com velho amor.

Dorme tranquila rodeada de vagalumes,
Imersa em sono seguro, de cura sem fim.
E na aurora, tão forte, sua vida reassume.
Sela e segue, determinada, loba de mim.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Caos

Estavam de tal maneira que cercavam-se entre si. Metralhadoras em punho, cada qual apontando para outro, que se atirassem todos, ao mesmo tempo morreriam. Em frente ao carro da moça, esta cena desfigurada se apresentava como realidade, num dia quente, em que ela acabara de sair do trabalho a caminho de casa. Passava pela viela, para cortar caminho, carregando no veículo os pertences e mais três amigos aos quais dava carona diariamente. Parou atordoada e subitamente, todos os olhos atentos àqueles homens de cara lavada, expressões de ódio. Gritavam para que saíssem imediatamente de carro, com as mãos para o alto. Fizeram o que mandaram.

Eram tempos estranhos. Todos tinham tudo, menos o essencial. Celulares, carros do ano, computadores, televisões, acesso a internet. Escolas lotadas, planos de saúde atingiam marcas incríveis de adesão, dinheiro no banco rendendo em investimentos e carteiras atraentes. Mas não havia mais água e nem comida. O bem mais precioso, que alimentava vitalmente os humanos, estava esgotado. Água potável não era mais regalia de poucos. Não havia moeda que a comprasse porque a Terra estava seca. E com isso, a comida se foi. Plantações inteiras perdidas. Animais morreram de sede. Sobraram apenas as cápsulas.

Pois seguiam-na sempre, a espreita, especulando porque ainda era saudável. Perceberam que todos os dias, a pequena frasqueira vermelha ia e voltava. E seu corpo continuava esbelto. Não era raquítica como os outros. Não tinha olheiras. A pele não descamava e nem as unhas. Os cabelos eram fartos. Sim, ela bebia água e comia. Estava ali, tudo na frasqueira!

- Passa a marmita! Anda, vamos, dá essa marmita, se não nos matamos todos, na sua frente! 

A moça chorava copiosamente. Tinham-na descoberto. E esse era seu fim. Poderia deixar prá lá, que se matassem mesmo, afinal era pouca carne humana perdida, comparada ao seu segredo, que a mantinha viva. Mas será que conseguiria voltar a dormir, todas as noites, com a sombra da morte alheia nos ombros, pesando sobre seu livre arbítrio? E se cedesse a tal ataque, logo se tornaria alvo de outras tantas pessoas, que a perseguiriam, porque fofoca voa rápido, até que enfim não tivesse mais chance e se tornaria mais uma moribunda, a procura. 

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Capitalismo

Quero ser.
Ser sem saldos negativos,
Coisas e bibelôs.
Angustiada,
Trabalho exaustivamente.
Consolido diariamente
A estúpida forma
De ter humano que me tornei.
Choro
Em meio a esse emaranhado
De contas a pagar que eu virei.
Cada vez mais longe,
Quase nem o vejo:
O sonho.
Resta-me
Cobrir minha filha
Enquanto dorme.
Ou aquecer meus pés
Nós pés do meu companheiro.
Estamos mesmo sós,
Presos a essa teia de horrores.

sábado, 11 de agosto de 2012

Estar Professor

Alternativas para os transformadores
Eram só duas, de total crueza:
Suicídio ou civil armamento.

Reformistas e desanimadores
Eram maioria, cheios de aspereza,
Fadados a um triste desalento.

Artistas e ainda professores
Eram poucos, sós por natureza,
Nadando contra um rio turbulento.

De mim, estranha assim,
O que seria? Seria o fim?

Tracei um caminho
De planos coloridos
Ser nunca sozinho
Em desertos áridos.

Tinta, pincel e gente.
Cor, amor e gente.
Gente, gente, gente.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Gabriel Vinícius Alves

Imerso em tanta aspereza
Preso pelos pés
Àquela dor do jamais
Não vê que há grande beleza
No teu coração
E naquilo que faz
Guarde no peito a certeza
De que és o que és
E que pode ser mais
Não permita que a indelicadeza
Amargue tua ação
E te deixe para trás
Mantenha tua luz sempre acesa
Segue tua canção
Sabe que é capaz
De transformar toda a tristeza
Em verso e oração
De liberdade e de paz

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Casados - III

Escutava a tal música do Lenine enquanto pensava no calor do corpo do marido. Fazia-lhe falta um carinho antes de dormir. Queria aquele cheiro de novo. Desejava tê-lo todo, imediatamente. Desceu descalça, em passos leves e, sem hesitação, ao vê-lo estirado no sofá (vendo o jogo de toda a quarta), pulou em seu peito e sufocou-lhe de lambidas, dengos, deixando-lhe sem pijamas e sem ar.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Versinho

Esparramo sonhos num branco lençol,
Que envolve meus pés em noites de outono,
E faço uma trouxa que levo comigo
Para viajar por caminhos de medo e riso.

domingo, 5 de agosto de 2012

O Causo da Porta Aberta

As coisas mudavam sozinhas de lugar
E perguntava-se se estava mesmo louca.
Barulhos estranhos nos cômodos do lar
E perguntava-se se estava mesmo louca.
Sentiu cheiros, viu um vulto passar...
Sim, estava louca, acreditou mesmo chocada.
Pois não devia!
A culpa era da porta aberta.
Estava lá, em sua companhia,
Escondida talvez há muitos dias,
A gata prenha que motivou o seu retorno à terapia.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Constatação

Confinaram a beleza
Em gavetas com bolor
E arruinaram tuas cores.

O halo luzente na noite
Lua cheia de esperanças
Mingua.

Extirparam a delicadeza
Com regras para o sabor
E categorias para os amores.

O fiapo que restou
Dos retalhos tão bonitos
Rasga.

Laminaram a aspereza
Com clichês de horror
Por medo das dores.

Sede que moveu o corpo
Em direção oposta
Seca.