Em agosto, Antonia...
Depois daquele dia, ela não mudou mais nenhum objeto de lugar. Ficou tudo intacto. Nada foi jogado fora. Tudo estava exatamente como na lembrança. E há mais de dois anos ela não tinha coragem para abrir aquela porta. O cômodo devia estar repleto de poeira, ácaros devorando as memórias. Sequer conseguia limpar a casa quanto mais isso. Era demais para sua vida devastada. Havia até escondido a chave dentro do pote de arroz para que não ficasse por demais atordoada em conviver com ela, pendurada no gancho da cozinha. Olhar para a chave daquela porta fazia com que se sentisse covarde, até um pouco morta também. Já não sabia o que era pior: acordar, dormir e acordar com aquela sensação eterna de impotência ou viver o horror daquela perda, que decerto, assombrava seus pensamentos diariamente. E numa manhã qualquer, dessas em que tudo está estranhamente normal, enquanto uns diziam que ela estava deprimida, outros que estava conformada e ainda aqueles que acreditavam já ter superado, ela explodiu o apartamento com uma bomba caseira. Pedacinhos de tijolos e histórias guardadas voaram pelos ares num zunido ensurdecedor. E então a dor passou.
A Professora
Tomada por um descontentamento sem fim, daqueles tristes mesmo, em que não há palavras e nem gentes que lhe arrancasse ao menos um sorriso amarelo, a professora subia diariamente as escadas da escola como se estivesse acorrentada pelos pés; arrastava-se pelos corredores, olhando a todos e sem ver ninguém. As crianças, que sempre foram seu porto seguro e motivo de suas pequenas felicidades cotidianas, percebiam no seu rosto o quanto estava abatida e cansada; mas sabiamente não lhe perguntavam nada, para não fazê-la aguar-se ou derreter-se em meio aos diários, na sala de aula. Apenas cercavam-na em sua chegada a classe, para demonstrar-lhe afeto. Os mais serelepes, tentavam piadas cutinhas e bobas para deixar-lhe contente. E poucos, os mais quietos, faziam-lhe um carinho nos cabelos ou davam-lhe a mão quentinha, na hora da fila. Era fato que a professora, sempre tão alegre e disposta, passava por maus bocados, mas os pequenos sabiam que não poderiam compreender problemas de adultos e faziam a sua parte, sendo crianças mesmo. A professora viu guardada tanta tristeza dentro de si! Já não era mais salário, carreira ou os problemas de voz que a afligiam. Nem a indisciplina ou as tantas horas que passava em pé. Pensou que talvez fosse o descaso e a omissão. E ainda tinha aquela sensação terrível de não sentir-se parte de nada. Como se o fio invisível que passa em meio ao corpo estivesse rompido, a professora chegava em casa partida ao meio, com a alma em frangalhos, à procura de um banho de sais e um chá de melissa. Mas então, nessa rotina que nunca acabava, algo surpreendente aconteceu e tudo mudou. E nada mais seria como era antes. Para sempre. Naquela estranha noite chuvosa, enquanto todos dormiam e uns poucos boêmios afogavam-se em copos de pingas baratas, milhares e milhares - na verdade incontáveis - guarda-chuvas coloridos, abertos, caíram lentamente dos céus e ficaram planando sobre as casas, avenidas, por toda a cidade. A professora, que estava deitada com sua máscara de alecrim nos olhos, ouviu um barulho à janela; levantou-se e ao abri-la, lá estava ele, seu salvador: um guarda-chuva grande amarelo, pipocado de bolinhas rosa pink. Não hesitou. Não teve dúvida. Agarrou o cabo do guarda-chuva com toda a esperança que lhe restava no espírito e saiu voando com ele, mesmo consciente de que estava vestida com pijamas e pantufas. E nunca mais voltou.
Caos
Estavam de tal maneira que cercavam-se entre si. Metralhadoras em punho, cada qual apontando para outro, que se atirassem todos, ao mesmo tempo morreriam. Em frente ao carro da moça, esta cena desfigurada se apresentava como realidade, num dia quente, em que ela acabara de sair do trabalho a caminho de casa. Passava pela viela, para cortar caminho, carregando no veículo os pertences e mais três amigos aos quais dava carona diariamente. Parou atordoada e subitamente, todos os olhos atentos àqueles homens de cara lavada, expressões de ódio. Gritavam para que saíssem imediatamente de carro, com as mãos para o alto. Fizeram o que mandaram.
Eram tempos estranhos. Todos tinham tudo, menos o essencial. Celulares, carros do ano, computadores, televisões, acesso a internet. Escolas lotadas, planos de saúde atingiam marcas incríveis de adesão, dinheiro no banco rendendo em investimentos e carteiras atraentes. Mas não havia mais água e nem comida. O bem mais precioso, que alimentava vitalmente os humanos, estava esgotado. Água potável não era mais regalia de poucos. Não havia moeda que a comprasse porque a Terra estava seca. E com isso, a comida se foi. Plantações inteiras perdidas. Animais morreram de sede. Sobraram apenas as cápsulas.
Pois seguiam-na sempre, a espreita, especulando porque ainda era saudável. Perceberam que todos os dias, a pequena frasqueira vermelha ia e voltava. E seu corpo continuava esbelto. Não era raquítica como os outros. Não tinha olheiras. A pele não descamava e nem as unhas. Os cabelos eram fartos. Sim, ela bebia água e comia. Estava ali, tudo na frasqueira!
- Passa a marmita! Anda, vamos, dá essa marmita, se não nos matamos todos, na sua frente!
A moça chorava copiosamente. Tinham-na descoberto. E esse era seu fim. Poderia deixar prá lá, que se matassem mesmo, afinal era pouca carne humana perdida, comparada ao seu segredo, que a mantinha viva. Mas será que conseguiria voltar a dormir, todas as noites, com a sombra da morte alheia nos ombros, pesando sobre seu livre arbítrio? E se cedesse a tal ataque, logo se tornaria alvo de outras tantas pessoas, que a perseguiriam, porque fofoca voa rápido, até que enfim não tivesse mais chance e se tornaria mais uma moribunda, a procura.
Recorte de uma tarde no hospital
Achava que o amor era isso: uns meses, uns beijos, uns recados na caixa
postal, uns torpedos, uns bilhetes, uns amassos e umas boas pegadas. E
quando esse amor acabou, desconsolada, parou de comer. Durante um final
de semana, bebeu apenas água e pôs a todos aflitos. A mãe, aquela que
achava que sabia o que era o amor, levou a menina chorosa e de olhos
fundos até o hospital, para que o doutor lhe dissesse algo, pois suas
palavras e exemplos não convenciam a menina. Gabriela ouviu atentamente o
médico, paciente, aguardou a bolsa de soro se esvair em seu corpo por
uma hora. Depois, quieta e de cabeça baixa, perguntou à mãe: porque dói
tanto? E ficou sem resposta. Esta bem queria dizer-lhe: Ah querida,
todos doem, o amor está em toda a parte... Mas estava por demais cansada
e assim ficaram ali, sentadas no banco, até o retorno para a
reavaliação.
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