Como tudo começou


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Chegou mesmo o dia em que decidiu escrever um livro. Porque, de acordo com o que todos dizem por aí sobre a vida e a felicidade, parece que uma pessoa só se sente plena quando cumpre três etapas em sua existência: planta uma árvore, tem um filho e escreve um livro.
Pois então, as duas primeiras etapas já estavam concluídas e essa sensação de plenitude nem despontava na pontinha de um fio sequer de seus cabelos. Talvez fosse mesmo o que faltava: escrever o tal livro.
Mas por onde começaria?
Há tempos não escrevia uma carta, ao menos... Apenas recados rápidos em redes sociais virtuais, lembretes na geladeira, mensagens para celulares conhecidos, legendas das fotos do álbum de seu tesouro, observações nos trabalhos de seus alunos, diários de classe.
Um livro era diferente. Era coisa que desejava mas a assustava.
Com a disciplina que sempre marcou seu caráter, definiu que todas as noites escreveria algo em sua agenda nunca usada de 2008, com a intenção de treinar; de escrever e pensar sobre o que escreveu. Achou que esse seria o primeiro passo rumo ao livro, sinônimo imediato de plenitude e, então, felicidade.
Mal sabia onde estava se metendo!
Seria muita ousadia pensar que era capaz de imaginar histórias que outros sentiriam prazer em ler? Ou seria um livro didático? Poemas? O caminho era a ficção? Ou não?
Tantas perguntas só reforçaram que a atitude de escrever diariamente poderia revelar o caminho que a escrita tomaria.
E foi assim que, no seu último dia de férias, ela empunhou uma caneta azul que estava em seu criado mudo – aquela mesma que respondeu a palavras cruzadas as quais adorava resolver, que notificou os resultados positivos das avaliações corrigidas, e que poderia enfim, mudar seu destino – e, como uma arma, foi estraçalhando o papel com palavras que estavam guardadas talvez há anos, quem sabe?
Talvez estivesse sendo ingênua demais.

Escrever seu suposto livro a salvaria da vida que tinha escolhido? Seria estupidez crer que as folhas da velha agenda mudariam as noites em que se deitaria sozinha com seus pensamentos? Tirariam a angústia e ansiedade de seu peito? Ah! Será que as palavras seriam capazes de alimentá-la, suprí-la de vida?


Tinha tanto desejo de viver e criar... Até hoje, nada e ninguém tinham dado conta de tal tarefa.
Seu espírito selvagem estava amarrado a uma espécie de roteiro que criou para sua própria vida - bem seguro, cheio de limites e regras.

Sim, pensou que o livro poderia deixá-la fugir, romper, soltar-se.

Afinal, era mesmo mentira que estava escrevendo por causa da tal plenitude!!!
Boba.
Escrevia para libertar-se dos outros, de tudo, de si.

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Passaram-se uns dias.
Não estava seguindo a risca o que havia se proposto a fazer - era quase impossível escrever todas as noites porque sua vida era cheia de imprevistos.
Ora era a cólica que a encolhia na cama mais cedo, ora era a filha que a esgotava até tarde, ou o trabalho, ou e-mails que a pregava no computador, ora era o marido, a gripe pelo tempo seco, o telefonema para a irmã.
Em conversa com seu esposo sobre as possibilidades de um dia publicar o que escrevia, percebeu que tratava-se de algo que não seria fácil, quanto mais acessível aos bolsos de dois professores mal pagos.
Por constatar que não estava disciplinada o suficiente, em relação a produção manual de transformar seus pensamentos em palavras naquela agenda, e que o produto final tão desejado era incabível porque utópico, decidiu aliar-se a internet, como já tinha feito outras vezes, criando um blog, que solucionaria os dilemas expostos.
O blog tornaria tudo público e acessível de maneira gratuita e, a idéia de ter leitores diariamente, obrigaria que escrevesse, mesmo com tantos "oras".
Sendo artista, bem no fundo do coração, não viu nenhum problema em suas palavras serem copiadas ou coisas do tipo, porque acreditava que era a partir da recriação, do tomar para si e resignificar, do vomitar após devorar, que a humanidade e a arte se faziam. A concepção de autor de obra ou direito sobre ela não fazia muito sentido em sua cabeça.

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Pensou no que as pessoas gostavam de ler. O que será que as comovia? O que rendia conversas em bares? O que seria capaz de manter a atenção e o interesse?
Já tinha lido muitos livros e considerava bons os que criavam aquele desejo intenso de lê-lo e terminá-lo, livros que faziam-na ficar acordada noite adentro, devorando páginas.
Ao mesmo tempo pensava nas pessoas que gostam de ler sobre a vida das outras, nessa onda Big Brother de escarafunchar a intimidade alheia.
Precisaria ser popular? O que significa o termo "popular" mesmo? Porque o Big Brother é popular... Deus também é popular...
A idéia de escrever sobre sua vida - de forma um pouco distanciada, contando casos diários como se não fosse a protagonista - poderia ser uma alternativa popular e intrigante.
Alguns achariam isso perigoso, sua mãe seria a primeira. E foi mesmo.
Contando a ela sobre suas perspectivas em relação a publicação virtual, disse-lhe que essa exposição poderia causar-lhe problemas. Até um velho amigo reiterou que a internet poderia ser audaz e cruel.
Medo.
Deixaria que esse medo, frente a exposição, tolhesse sua vontade louca de disparar palavras no teclado, todas elas navegando libertas, se espalhando rumo às cabeças e bocas de pessoas desconhecidas de todos os lugares, em poucos segundos?
Claro que não.
Gostava das brechas que estava encontrando em seu "manual prático da vida", onde podia deixar-se ser quem realmente era e expor o que desejasse.
Após a primeira publicação - que contava os primeiros passos de seu processo de escrita - recebeu comentários virtuais positivos, incentivando a continuidade da atividade e elogiando o estilo.
Isso conferiu a sua alma um ânimo extra. Estava feliz por algumas pessoas terem dedicado um pouquinho de tempo à leitura do que havia criado. E também porque se importavam com ela e fizeram questão de comentar o que haviam apreciado ou não.
Na primeira tentativa de prosseguir em seu projeto, escolheu escrever sobre o que acalmava seu coração, apesar do principal objetivo ser a experimentação livre dos caminhos da escrita e a elaboraração dos seus registros.
Portanto, começou a trilhar a estrada mais fácil e também prazeroza, mesmo sabendo que ficaria mais vulnerável, exposta e sujeita a descréditos.
Acreditava que o mergulho nos diversos gêneros textuais também enriqueceria a experiência e seu repertório pessoal e enfim, definiu um primeiro desses gêneros para explorar.
Sua receita inicial foi misturar: diário + distanciamento + algumas mentirinhas = próximo capítulo.

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Leu, releu, corrigiu, conferiu, mudou mais uma vez. Depois de quase 5 noites, postou.

          # Tentativa 1 #

Acordou bem cedo para aproveitar o domingo de um final de semana que estava voando. Era bom que se levantasse antes da filha acordar, assim podia tomar banho sossegada e talvez fazer touca de creme nos cabelos. Estes andavam um pouco desgrenhados pela falta de tempo para cuidar de si e porque, a vaidade, não era pecado que costumava cometer, pois julgava-se bonita ao natural, sem o brilho e as cores das maquiagens. Aliás, os cabelos eram curtos para que não demandassem tantos produtos especiais e porque cismou, certa vez, que seu rosto oval combinava com eles e, deste dia em diante, conservou-os assim. Castanhos como seus olhos, os fios eram desfiados a navalha, o que lhe conferia um ar juvenil e, em sua opinião, um pouco rebelde.
De frente ao espelho do banheiro, checou o rosto, as curvas dos quadris, os seios. Diariamente repetia esse ritual de avaliar como estava sua aparência e, com um sorriso, atestava para si que estava satisfeita. Gostava da sua brancura e magreza, dos olhos grandes e até da pequena marca de nascença que carregava no peito. Tinha orgulho de, após o nascimento da menina, ter conseguido manter-se em forma.
Pensou que queria fazer outra tatuagem e ficou procurando em seu corpo qual seria o melhor lugar. Há três dias que essa nova idéia vinha passando por sua cabeça. Pensava em um desenho que fosse uma homenagem ao seu rebento.
Olhando melhor para si, percebeu que não havia lugar apropriado para o que estava imaginando: queria algo discreto mas visível, bonito e delicado. Porém, a parte que mais gostava do seu corpo era também muito sensível e, apesar de já ter sentido muita dor nessa vida, ficou com medo das agulhas que já conhecia da época em que fez a primeira, quando ainda estava na faculdade.
Então desistiu.


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Com quase dezoito meses, nenhum dentinho havia chegado, estavam para erupcionar. Era bem por isso que estava tão manhosa. Na semana anterior, assustou a todos com uma febre que foi embora rapidamente, do jeito que chegou. E de lá para cá, não queria mais saber de se alimentar bem. Tomava pouco leite, recusava as papinhas de frutas; nem o pão que tanto amava andava lhe fazendo vontade.
Há dias que estava preocupada com a bebezinha e se não fosse por estar de férias, o coração da mãe teria se apertado mais ainda, longe de sua filha todas as manhãs.
Naquele dia, havia preparado uma sopa de ervilhas, bem nutritiva, com tudo o que é substancioso, mas a filha não quis. Estava tão irritada que comeu apenas duas colheres da comida e logo bateu no talher, esparramando tudo pela roupa limpa que logo ficou verde, pelos cabelos e rosto. Havia feito o mesmo com a vitamina de frutas oferecida a ela pela manhã.
Ainda paciente, a mãe guardou cuidadosamente o que sobrou, trocou a roupa, lavou-lhe a face e os cachinhos. Preparou então um leite morno, que sempre tranqüilizava, na esperança da menina se alimentar um pouquinho, mas esta não quis nem bicar a mamadeira. Seus olhinhos cansados queriam dormir.
A mãe pegou-lhe no colo e começou a embalar, cantando uma música antiga e bonita, que sua mãe havia lhe ensinado... A menina chorava. Cantou outra, e outra, e ainda outra. Umas dez canções. Nada acalmava. A pequena apontava para as bonecas. Queria dormir com elas, seis bonecas ao mesmo tempo. Mas não há como uma mãe carregar sua filha e ainda seis bonecas, para fazê-la dormir.
Foi então que perdeu sua paciência costumeira e, apoiada nas dores que as hérnias de disco lhe causavam , falou alto com a bebezinha, em tom sério e nervoso: CHEGA!
Seus olhinhos assustados, na mesma hora encheram-se de lágrimas, e foi assim que a menina mal descansou quando finalmente dormiu, sozinha em seu berço. Ao acordar após o cochilo, a mãe percebeu as olheiras naquele rosto branquinho e delicado que tanto amava.


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A certa altura da noite, não conseguia dormir, pensando em como havia sido grosseira com aquela criança indefesa. Estava arrependida. Tinha sido muito infantil. A menina não tinha culpa de nada.
Sentiu-se sozinha, incapaz de cuidar. Sentia falta de que cuidassem dela, de vez enquando, mas não permitia que ninguém soubesse de uma coisa como essa.
Será que a bebê estava tendo pesadelos? Será que estava sonhando com o dia exaustivo que tinha passado?
O coração da mãe se apertou ainda mais quando ouviu uma resmungadinha através da parede que dava para o quarto da filha. E então, com quase trinta anos, chorou feito a filha, de soluçar.
Esperava que um dia, todo o amor de mãe que dedicava a menina, é que ficasse em suas memórias mais remotas e não os erros, que estava sempre cometendo, como aquele daquela tarde.


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Os dias passaram rápido demais e as noites, ao contrário. A febre, que foi causada por uma repentina virose, concomitante ao nascimento dos dentes, não as deixava dormir há dias. A única coisa a fazer era esperar tudo passar, administrando antitérmico quando necessário.
Doía demais ver a filha doente. Antes de se deitar, chegou a perder o ar só de pensar que a menina estava sofrendo. Não entendia como podia caber tanto amor em seu coração.


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Era uma mulher de poucos amigos.
Os que não compreendiam seu espírito ou não conseguiam acompanhar seus devaneios e pensamentos ou, ainda, compartilhar de seus projetos, afastavam-se rápido e discretamente. Alguns estavam por perto apenas para aproveitar suas idéias originais ou para tê-la como um Judas a quem se bate quando está nervoso. Aos raros companheiros verdadeiros que encontrara, fazia questão de demonstrar afeto e apreço porque bem sabia que não os queria perder e, se estavam ali, é porque algo de puro em suas almas encontrava eco na sua.
Assim, depois de tanto tempo, era possível contar nos dedos das mãos as pessoas especiais com as quais se identificava e mantinha contato. Sociável e generosa, tinha feito muitos colegas por todos os cantos que passou, mas estas relações superficiais não preenchiam, de modo algum, seus anseios em relação ao que esperava da humanidade.
Queria mais. Queria paciência, trabalho em equipe, reciprocidade e carinho. Desejava o riso, o sonho, a palavra. Acreditava na relação baseada no olhar verdadeiro, na sinceridade e no diálogo. Esperava a cara lavada e não a máscara.
E era difícil. Porque a chamavam de boba, trouxa, ingênua. Porque sofria ao descobrir que era usada sem saber. Porque doía perceber que ninguém se importava.     Porque era incompreendida e tachada de filósofa ou louca. Porque era um peixe fora d'água ou nadando contra a maré. Quase sempre.
Então acostumou-se a fingir não ouvir, a engolir sapos e rãs, a dar sem receber; para poupar-se. Resignada, deixava que sua voz metálica calasse. Dizia apenas o que queriam ouvir. Ficou um tempo rouca e, de tanto calar, perdeu mesmo a voz por vários meses.
Passados os tratamentos fonoaudiológico e terapêutico, reviu e mudou sua conduta.
Deu voz a sua voz, disse o que era necessário, gritou quando esteve irritada - com razão ou sem ela, sussurrou carinhos ao pé do ouvido, cantou no chuveiro, falou verdades amargas e aprendeu que para se preservar não era preciso emudecer o coração nem a alma.
Bastava apenas compreender que era diferente e que não encontraria tantos parecidos consigo por aí. Partilharia o possível, com quem estivesse preparado e receptivo. O resto, o impossível para o homem digerir ou aceitar, teria como cúmplices apenas um papel e uma caneta.


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Cabelos pretos e brilhantes, fartos e ondulados, emolduravam o rosto daquele que estava ao seu lado há mais de dez anos. Sua pele era mais morena, o nariz mais adunco e as orelhas menores que as suas. Os olhos castanhos brilhavam quando falava das coisas que amava. Tinham também a mesma idade e altura, além de nomes idênticos, a não ser pela flexão feminina do substantivo próprio.
Amigos já tinham dito que até pareciam irmãos, pois o tempo fez com que ficassem semelhantes, em tal equilíbrio que muitos os chamavam por um codinome, uma espécie de identidade para o casal, resumida em uma só palavra.

      
:o:


Já há duas primaveras que o equilíbrio era coisa complicada. A sintonia, sempre marcante dessa relação, deu espaço ao descompasso. Estavam em frequências diferentes.
Talvez porque não eram mais um casal - e sim um trio - e ainda não tinham encontrado um modo simples de ajustar velhas manias e sonhos antigos a essa nova realidade.
Estranho, porque tudo fora planejado cuidadosamente, principalmente por ela, que tinha sua vida bem definida, onde nada era possível lhe escapar entre os dedos. Não compreendia porque a fórmula daquele amor não funcionava mais.  
Seria possível reconstruir tudo?
Juntar pedaços, apagar tropeços, refazer planos, ceder aqui e ali, esquecer palavras mal ditas, esconder o medo de sofrer de novo, re-conhecer a boca, os beijos... Guardar, como no primeiro encontro, o cheiro e o gosto. Descobrir, no mesmo corpo do outro - seu velho conhecido - outros detalhes que não os mesmos.
Era completamente apaixonada por aquele homem.
Acreditou que sim.
Na manhã seguinte, no silêncio de seu quarto, enquanto a casa e sua família ainda dormiam, fez uma lista de verbos que precisava usar mais em seu cotidiano, isto é, ações diárias que deveria colocar em prática e que fariam parte de seu plano pessoal para a reconstrução tão desejada de seu casamento. Pensou que precisava ter mais atitude além do discurso.
         
RESPEITAR
REVER
PEDIR
ACARICIAR
CEDER
OUVIR
PERDOAR
ESQUECER
SORRIR
BEIJAR
ESCREVER
RESISTIR
DESEJAR
LER
PERMITIR
ACREDITAR

Organizou-os de maneira que rimassem porque gostava dos sons das palavras e de como o amor era capaz de tornar tudo mais musical.
Sim, o amor ainda estava vivo e essa sensação lhe dava paz interior.
Fazia um bom tempo que não dormia tão bem quanto a noite anterior.
Seu coração estava repleto de esperanças.


:o:


Com cinquenta anos ou mais, a casa onde morava com sua família ainda era uma construção forte e bem estruturada. Mais elevada que o nível da rua - condição que devia ter sido fundamental e favorável quando o rio ainda não era canalizado - tinha algumas paredes internas feitas com dois tijolos de largura, o que lhe conferia um ar imponente.
Estava ali há poucos anos mas já conhecia todos os moradores da rua, apenas de vista, porque não era vizinha de conversar em portão ou janela. Na casa geminada a esquerda, residia uma família numerosa e barulhenta: batiam portas, gritavam com as crianças, um entra e sai de desconhecidos nos fins de semana, hinos durante o dia tocando a decibéis impossíveis. Já a direita, tinha uma velha senhora sozinha e sua casa mais parecia uma relíquia, quase prestes a desabar.
A rua estreita não comportava que passasem dois veículos ao mesmo tempo mas, por ser uma via de ligação entre duas avenidas importantes - espécie de atalho rápido - era bem movimentada, especialmente pela manhã em razão do fluxo de pessoas rumo ao trabalho e nas sextas-feiras a noite, quando imaginava que todos pediam pizza ao mesmo tempo.
As calçadas, também estreitas e cheias de postes de iluminação, não eram muito utilizadas pelos pedestres, porque seriam obrigados a desviar a cada metro ou passada de um escremento de cachorro, não recolhido pelo dono irresponsável. Assim, a rua era um misto de gente, carros e motos, todos na via. Bastava um caminhão para que tudo parasse e ficasse travado.
Mesmo com essas desvantagens, gostava de morar ali.
Estava mais próxima do comércio e das vias de acesso, a casa era espaçosa para receber visitas, tinha um quintal para estender aquele mundaréu de roupinhas, o sol batia a tarde nos quartos e bem por isso os ambientes eram aconchegantes.
Nesse bairro antigo e tradicional, ainda encontrava-se o bar português, famoso por seus bolinhos fritos de carne, que ficava de frente a sua garagem e, aos domingos, quando os ruídos dos carros e motos diminuíam, os garotos empinavam pipas e era possível escutar o canto de alguns poucos pássaros.

- 5 -

A tentativa 1 não deu certo. Parou de escrevê-la.
Os textos, apesar de bem elaborados, coerentes, fluidos e interessantes, estavam causando constrangimento e trazendo desconforto para a relação que tinha com seu companheiro. O marido não concordava com a exposição que a internet causava.
Por mais que houvesse distanciamento da verdade e dos personagens em relação a vida diária dos dois, ele achava óbvio que as pessoas relacionariam a ficção do blog com a vida cotidiana do casal e fariam associações falsas e desagradáveis.
Os leitores não saberiam distinguir as mentiras e invenções, das situações descritas baseadas em fatos verídicos; portanto, a imagem da família estaria sujeita a deturpações e julgamentos infundados.
Era preciso reunir idéias e encher os pulmões de fôlego para a próxima alternativa de escrita que ainda não se configurava em seus pensamentos.
Será que a vida lhe prepararia surpresas?
Na busca por outros caminhos, vasculhando seu arquivos esquecidos em alguns bytes de seu computador pessoal, encontrou textos que tinha escrito há mais de 3 anos e releu-os, com aquele saudosismo e melancolia típicos de quem ama suas produções.
Alguns eram tão interessantes que desejou publicá-los. E não fez alterações nem correções porque acreditava que tais textos eram reflexo de uma época e mudá-los seria como infringir sua própria história de vida e de crescimento intelectual.
Começou pelo roteiro de uma performance teatral, que escreveu para que ela mesma encenasse, o que nunca ocorreu. Naquele momento, pensava em uma esquete rápida, de poucos minutos, que pudesse ser apresentada num pequeno palco da metrópole em que morava. Os recursos cênicos utilizados seriam mínimos para que não demandasse transporte, contra-regras e outros adendos.
Lembrou que escreveu o monólogo logo após a leitura de uns textos de Artaud. Tais textos marcaram sua memória por serem viscerais e absurdamente belos.

- 6 -

Desde sempre gostou de poesia. Ainda na época de colégio, escrevia tanto que se fez necessária uma pasta, para organizá-los. Como ainda não tinha acesso a tecnologia de ponta por ser cara, usava uma máquina de escrever Olivetti, tão compacta que cabia numa maleta, que fora de sua mãe. Datilografava rápido e fez até um curso de aperfeiçoamento para que produzisse com mais eficácia. 
Os poemas eram sua vida. Carregava a tal pasta para todos os cantos, lia os versos para os amigos mais íntimos e chegou também a vendê-los.
As garotas que desejavam conquistar seus amores e não sabiam ao certo o que dizer a eles, logo a procuravam na busca de poesias bem feitas, que pudessem derreter os corações. A preços módicos, seus poemas faziam as pessoas felizes e ela, por sua vez, conseguia comprar um pacote de salgadinho e uma Coca-Cola na cantina da escola, as sextas-feiras.
A tal pasta cresceu tanto que logo ficou pequena. A alternativa foi encadernar as folhas, em pequenos blocos de 100 páginas. Além disso, catalogou os títulos e os dividiu por temas, para que ficasse mais fácil na hora de selecioná-los.  Os temas eram identificados por cores: vermelho para os de amor, amarelo para os de amizade, preto para os de solidão, azul para os autoreferentes, verde para os nacionalistas, laranja para os de crítica social e etc... Hoje, ria da tal classificação!
Entre os 13 e 16 anos, escreveu tanto que criou calos nos dedos da mão direita e nem olhava mais para as letras quando datilografava os manuscritos. Depois, começou a tranformar alguns deles em músicas, cifrando-os para violão. Suas músicas faziam sucesso nas rodinhas, madrugada a dentro na praia, ou no intervalo das aulas do Ensino Médio.
Passou o tempo e com a chegada do computador pessoal, abandonou a velha máquina. Poucos novos poemas já estavam digitados; a maioria ainda permanecia nas agendas, esperando uma brecha em sua louca vida sem tempo, para que pudesse sair dali.
Além de fazer poesia, gostava de ler poesia. Florbela Espanca, Pablo Neruda, Vinícius de Moraes, Mário Quintana, J.G.de Araújo Jorge, Carlos Drummond... Estavam sempre na cabeceira de sua cama, velando seus sonhos.


:o:


Achou engraçado retornar àquilo que sempre a acalmou e lhe trazia prazer. Para ela, escrever era tão fundamental como tomar banho, comer ou dormir. Não compreendia como havia ficado tanto tempo distante daquilo que amava. Por que será que tinha se afastado das palavras, do papel, da criação?
Mais tarde, selecionou poemas que havia escrito em suas agendas esquecidas - algumas poucas ainda estavam guardadas em uma gaveta de seu criado mudo - e os transcreveu para o livroblog, na intenção de tentar o caminho das sutilezas da alma.
Muitos nem nome tinham, estavam rabiscados ou corrigidos com o próprio lápis; setas ligavam pensamentos a outros no papel.
E prometeu para ela mesma que, no dia seguinte, resgataria seus compilados e encadernados.
Resgatando as poesias, achou também as que tinha musicado e, quando conseguiu enfim respirar e ter um tempinho livre depois das 23h, buscou o violão abandonado no canto do quarto - que há tempos não era dedilhado - e ficou ali, sentada na sala, cantando as velhas músicas que tinha composto em sua adolescência.
Ainda conseguia cantar no mesmo tom apesar do tempo ter alterado sua voz. Os dedos, hoje secos pelo pó de giz, continuavam ágeis: não tinham esquecido a dinâmica da técnica, as cifras eram claras e lhe vinham a mente como brisa gostosa da tarde.
Como era bom ter esse tempo, sozinha, sem ruídos. Só, com sua voz e suas emoções.

- 7 -

Ler tudo aquilo, cantar tudo aquilo; estava preenchida de energia para criar.
A saudade do tempo em que escrevia os versos deu-lhe ânimo para criar outros, novinhos em folha.
E agora, bem mais madura e também mais experiente, seria um novo desafio.
Como seria fazer poesia com quase trinta anos?
Não teria mais aquela ansiedade louca perante a vida? Estaria menos ingênua? Desencantada?
Ou será que ainda acreditava no amor ridículo, como disse outro poeta - lembrou do sarau de poemas que tinha presenciado em sua escola, onde seus alunos diziam sutilezas e delicadezas com as mesmas bocas que xingavam os companheiros de turma - e na beleza da vida?
Descobriria na próxima noite, quando novamente tomaria a caneta e a agenda antes de dormir, deslizando pelas linhas e deixando as marcas azuis, signos ritmados sobre suas angústias e desejos, dúvidas e medos...
Ah, que delícia!

- 8 -

Disposta a mergulhar no gênero do romance.
Durante trê dias consecutivos, escreveu e escreveu e escreveu.
Tinha uma história bonita se apresentando em sua mente, estava no calor da criação. Impressionante como cada detalhe dessa história ia ficando claro para ela. Ainda sem nome.
Empolgadíssima!
Seu companheiro leu os dois primeiros capítulos. Elogiou. Gostou mesmo, mesmo, mesmo.
Ficou realmente interessada em fazer as aulas de escrita com o professor argentino que a irmã havia indicado.
Depois de tudo digitado, conferido, lido e relido, postou os dois primeiros capítulos e deu a cara a tapa, mais uma vez, porque queria experimentar o novo.
Não estava com medo. Escrever essa história estava lhe dando prazer.

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