quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Resiliência

Ah, estrela da manhã
- estampa do anil,
luze e canta solitária
enquanto alinhavo,
de novo, sem pressa,
uns retalhos desfiados
do pouco do dentro
que restou de mim.

Pranto e contemplação
diante da colcha,
amarrotada e velha,
que persiste em ser
a casa das memórias
- panos de resiliência
e linhas de costurar,
juntos tecem viver.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Papel

O pulsar da palavra
No cheiro, textura,
Nessa gramatura
Do canson que lavra.

Retém o escrito,
Aconchego da letra;
De página tetra
Feito um monolito.

Vivifica memórias
E guarda, amarelado,
O que nos é sagrado
Entre tantas histórias.

Estampado, no plano,
Signos, fonemas...
Que tornado poema:
Explode gas metano.

Universo do papel,
Casa da quimera,
Válvula da espera
E do poeta, o céu.




quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Minha

Teu doce riso tem aquela beleza
do bater de asas de um beija-flor:
ele escapa do instante passageiro
que eu desejo, com amor, eternizar.

Teu brando colo tem aquele afago
da trama tecida em lã de cachecol:
ele envolve, quente, minha nuca
e eu almejo, com ternura, só ficar.

Medo

Vem o polvo do medo
- tentáculos espalhados,
que edifica em segredo
casas, muros, telhados.

De um bailar sedutor
que nos detém a mão,
paralisa, em torpor,
intentos do coração.

Tinta negra esparrama,
fétida cor que anoitece
o claro fulgor da chama.

O polvo insistente tece,
faz sua morada na cama
sob o jugo da prece.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Da Existência

I

Coisas são coisas,
nada mais ou além.
O que a vida detém
é o instante do já
- nossa eternidade.
Ou o que não convém
relembrar, mas está:
nossa efemeridade.

II

Saber-me finita,
Obra inacabada,
De experiência inscrita
No vazio que é o nada;
É angústia latente,
Soprando feito um hino,
E procuro, insistente,
O que em mim é divino.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Reminiscência

É seta que acerta,
feito um punhal,
nossas entranhas.
Bem antes da afronta,
vagueia nos cantos
escuros e sombrios.
Em seu regresso,
nos revira as tripas
- carne de ausências -
deixando seu rastro,
de riso entre os dentes
ou choro sem ar.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Amor de Menina

Deságua o sereno da tarde
E embala menina a caminho,
Que segue em saia florida.

Cambitos a toda prova
Em corrida angustiada
Para ver mãe de devoção.

Quer reza e mão na cabeça,
Unguento e chá de rosas
Para a dor sumir fugida.

No colo leva a medalha
Que vó Madalena deu,
Bem antes dos sete palmos.

É tanto que lhe pesa o ar,
É muito que sofre seu peito,
Chega a sentir um nó.

Acode velha benzedeira!
Não vai sem ver dois olhos
Esbugalhados de amor.

Agora ainda é o primeiro,
De muitos que virão no lombo
Ou que irão com o vento.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Busca

Em fios quase que invisíveis
- movidas pelas intempéries -
pequenas gavetas suspensas,
com suas possíveis respostas:
ao toque da mão que escolhe
qual delas, a mais aprazível,
ou um tanto menos doída.

Auroras, poentes, passaram
no abrir e fechar de tais nichos,
na pinça de cada esperança
- consolo, peneira ou flor -
e perdurou firme o zunido
de um irresoluto vazio:
arca de escuro sem fundo.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Anjo

Um grande arco resplandeceu
- eram tuas asas, abertas.
A palavra, contrária, emudeceu
e deu lugar à paz que acerta

- redefine o brilho do olhar,
outrora opaco e sem vida.
Tua presença ergueu, ímpar,
em mim, fortaleza desconhecida.

Fez-se pura em meu coração,
alegria sincera e desmedida,
estampada neste poema-oração.

Doce derramado em árida lida,
revelo a ti toda a devoção
da minh'alma, enfim, rendida.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Alegoria

Acorda!

Veste tua derme azul cintilante.
No punho, pulseira de conchas dissonantes.
Coroa tua fronte com um girassol.
Perfuma teu colo com olor de etanol.
Pendura no peito pesado cordão:
Macramé de pedras de construção.
Pinta teus lábios de forte vermelho.
Esconde entre os dentes um caco de espelho.
Prende os cabelos com rolo de fita K7.
Acomoda teus pés em um patinete.
A mão esquerda estendida conduz
Linda e negra frigideira de teflon.
Na mão direita, quase saltando, reluz
O rosa pink de um estonteante pompom.

Está pronta para ir.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Nuvem de Fumaça

Dissipa
Nuvem de fumaça
Que os olhos recobre
E emudece à sombra
Os coloridos sonhos.

Leva
Contigo, teus ruídos
Doídos e infiltráveis:
Redobram tropeços
Dos filhos trôpegos.

Some!
Vai-te embora agora
Sem deixar teu rastro
Cinza e mal cheiroso
No ar que aspiramos.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

O Abajour, a Moça e a Caderneta

I

Ansioso, aguardava que a noite não demorasse.
Queria vê-la, mesmo que brevemente, antes de dormir.
Gostava de sentir o toque delicado de sua mão.
Sem pressa, podia apreciar aquele corpo repousando.
Reparava até no tecido da camisola que ela usasse.

II

Orgulhava-se de ter o dorso esguio, forte e ereto.
Assim, podia avistar melhor cada detalhe.
Um pouco soberbo, claro, por saber-se imprescindível na vida daquela moça.
Por vezes, a arrogância era tanta, que resolvia falhar só para vê-la irritada.
Dono de uma incandescência ímpar, era a mais bonita estrela da madrugada.
E mesmo despido, fazia charme com seu branco chapéu carioca.

III

Mal sabia a moça que ele tinha uma amante. Sim!
Passava o dia roçando nela e fitando o corpo rubro de sua outra paixão.
Magra e de poucas curvas, mais silenciosa e discreta, a amante guardava mil segredos.
Pena que as duas fossem tão amigas e cochichavam a noite toda.
Será que elas tinham um plano?

IV

E ele ainda estragaria tudo.
Mais cedo ou mais tarde.